terça-feira, 12 de julho de 2011

No Vale do Ribeira, Comunidades Tradicionais são esmagadas pelo ambientalismo de fachada dos últimos governos de São Paulo (12jul2011)

Salve o verde (Jorge Ben)
Quarteto em Cy


Publicado em 08/07/2011 no sítio Outras Palavras.


Elas não usam 4X4

No Vale do Ribeira, patrimônio natural da humanidade, comunidades tradicionais afirmam: defender natureza pode ser modo (não moda) de vida

Reportagem de Luís Nagao

Eles vivem entre duas das metrópoles brasileiras mais ricas e modernas – São Paulo e Curitiba – mas convivem com realidades típicas das regiões mais pobres do país. O IDH de seus municípios só é comparável aos de Estados muito mais pobres, como Maranhão e Piauí. O acesso a escolas, internet, equipamentos culturais ou mesmo telefones é, em muitos casos, inexistente ou muito irregular. Parte deles tem como único meio de transporte garantido a água dos rios e embarcações precárias. Como se estas agruras fossem poucas, vieram, nos últimos anos, as ameaças de despejo. Primeiro, pelo governo paulista, que se ampara num falso discurso ambiental. Agora, em consequência da possível construção de quatro hidrelétricas – a mais importante das quais atenderá, exclusivamente, aos interesses do Grupo Votorantim.

Eles compõem dezenas de comunidades tradicionais: índios, quilombolas, caiçaras, pescadores e ribeirinhos. Vivem em municípios esquecidos, pequenas cidades ou na zona rural. Sofrem ameaças e, em casos não raros, estranhos desaparecimentos de lideranças. Estão no Vale do Ribeira – um Patrimônio Natural da Humanidade (ONU, 1999) que abrange o extremo sul de São Paulo e extremo leste do Paraná, estende-se do litoral à serra do Mar e abriga tesouros ambientais: entre eles, 61% da Mata Atlântica remanescente no país e a maior concentração brasileira de cavernas em rochas carbonárias.

Em 10 de junho, eles deslocaram-se a uma audiência pública, nos salões acarpetados (e de gosto duvidoso) da Assembleia Legislativa paulista. Expuseram uma proposta que merece ser examinada e debatida – por ser ao mesmo tempo sensata e incomum. Expressa num documento firmado por oito entidades e grupos, que juntos se denominam “Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira”, o texto apresenta 25 reivindicações, relacionadas a garantia de permanência no território, posse na terra e condições de vida dignas.

A leitura cuidadosa do texto revela: os que o assinam almejam uma nova noção de “progresso” que valorize sua proximidade com a natureza. Não querem autoestradas, automóveis, indústrias poluentes, agrotóxicos e viadutos – muito menos barragens que desalojariam milhares de famílias. Ao mesmo tempo, rechaçam uma visão que, apropriando-se do discurso ambientalista, quer expulsá-los de suas terras, supostamente em favor a natureza. Em alternativa às duas ameaças, formulam uma frase-síntese de suas ideias: “meio ambiente com gente”.

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Ocupado desde o século XVI – quando os espanhóis fundaram Cananeia e os portugueses, Iguape, ambas junto ao mar – o Vale do Ribeira tornou-se, ao longo do tempo, símbolo dos azares associados à mera exploração primária das riquezas naturais. No século XVII, a descoberta de ouro povoou a região de garimpeiros e escravos negros. Somavam-se aos guaranis (grupos Mbyá e Ñandeva), que lá estão há mais de mil anos. No final do XIX, os imigrantes japoneses transformaram-na no maior produtor de arroz do país. Mas quando a concorrência – primeiro, das Minas Geraes, depois de regiões agrícolas com mais acesso aos mercados – venceu a economia local, o Vale sucumbiu. Não havia desenvolvido estruturas de produção e consumo próprias, que não dependessem da exportação. No caso do arroz, o drama foi agravado pelo desastre do Valo Grande, talvez o primeiro grande acidente ambiental no Brasil. A mesma lógica de ascensão ilusória e declínio rápidos reproduziu-se com o café, chá e banana.

No século XX, a região ficou à margem tanto dos impulsos de investimento do capital quanto das políticas públicas. Embora ocupe 17 mil km² (área semelhantes à de Sergipe), reúne apenas 500 mil habitantes (bem menos que o bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro). A precariedade das condições de vida é mais dramática entre as comunidades tradicionais. Mesmo que o direito à terra lhes seja assegurado pela Constituição, a falta de titularidade faz com que terceiros invadam seus territórios. Apenas oito comunidades são tituladas e somente uma detém o registro. A falta de demarcação produz conflito com os invasores e explica, segundo muitos, o desaparecimento de lideranças.

A falta de investimento levou à desativação de escolas rurais. Algumas crianças precisam viajar duas horas de barco para estudar. As próprias escolas quilombolas não trabalham a cultura afro. Em 2010 o Programa da Saúde da Família (PSF), revelou-se um fracasso e as comunidades não possuíam atendimento médico. Solicita-se telefone. Há orelhões, mas não funcionam. Não há energia nas comunidades de Pilões e Maria Rosa. Mesmo na cidade de Barra do Turvo, 850 famílias não têm. “O programa Luz para Todos não foi para todos”, diz o documento entregue aos deputados paulistas.

A infraestrutura é outra debilidade. O único transporte viável para sair do Quilombo de Praia Grande e ir à cidade de Iporanga é, atualmente, o barco. As estradas vicinais estão abandonadas. Para acabar com o isolamento, os quilombos Pedro Cubas I e II pedem a construção de pontes. Quando caminham pela rodovia SP-165 que acompanha do Rio Ribeira, os pedestres correm risco: não há acostamento.

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Omisso e ausente até a década de 1980, o Estado passou a ameaçar ativamente as comunidades, desde então. Para fazê-lo, recorreu a um discurso ambientalista de fachada. Em 1985 a legislação ambiental criou corretamente, no Vale do Ribeira, diversas Unidades de Conservação. Surgiram ambientes apreciados pelas populações urbanas que nutrem preocupações ambientais, como o Parque Ambiental Turístico do Alto Ribeira (Petar). Mas ao invés de tratar como aliadas as populações que convivem com a natureza há séculos, os governos paulistas preferiram enxergá-las como inimigas. No caso do Parque Estadual do Jacupiranga, oito grupos foram retirados.

Os que permaneceram sofrem restrições absurdas. Os quilombolas e caboclos tomam multas a todo instante por retiraram poucos quadrados de mata para fazer uma minúscula roça. Numa região empobrecida, seria possível melhorar as condições de moradia construindo casas de madeira. Mas o corte de poucas árvores para este fim é vetado. Restrições do mesmo tipo também impedem construir pequenas estradas vicinais ou mesmo estender a rede elétrica para aldeamentos que dela não dispõem. “Por que nos Parques pode-se abrir trilhas para turistas, colocar energia nos núcleos de visitação e não se pode fazer chegar a energia para os Cablocos, Indígenas, Quilombolas e outros?”, indigna-se o documento das comunidades.

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A hipocrisia anti-social do governo de São Paulo desnuda-se por completo com a proposta de instalação das hidrelétricas, que avançou na última década. Se comunidades inteiras foram removidas das áreas de preservação no Vale do Ribeira; se a simples construção de pequenas roças ou a abertura de uma picada para instalação de postes de luz são proibidas, que critérios justificariam a inundação de cerca de 11 mil hectares de Mata Atlântica?

O espanto cresce à medida em que se examinam os detalhes do projeto. Propõem-se quatro usinas: Funil, Itaoca, Batatal e Tijuco Alto. A última delas é a maior e mais emblemática. A relação entre energia produzida e área inundada é dez vezes pior que a de Belo Monte. A usina planejada para o Pará será a terceira maior do mundo, gerando 11 mil megavates (Mw). Inundará 516 km². Tijuco Alto produzirá cem vezes menos energia: apenas 128 Mw. Mas devastará quase um décimo da área de Belo Monte – 51 km², num bioma incomparavelmente mais frágil e ameaçado.

Este enorme dano ambiental não acenderá uma única lâmpada a mais, num bairro urbano ou comunidade rural. Cada quilovate gerado em Tijuco Alto será empregado pela Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), para movimentar o complexo metalúrgico que mantém em Mairinque, região de Sorocaba (SP). A destinação exclusiva está, aliás, sacramentada em lei. O Decreto Federal 96.746 (21/9/1988), que permitiu a construção da barragem, determina: “o aproveitamento destinar-se-á à produção de energia elétrica para uso exclusivo da concessionária [a CBA], que não poderá fazer cessão a terceiros, mesmo a título gratuito”.

O governo de São Paulo defende os interesses da empresa privada com a mesma determinação usada para negar serviços públicos ao Vale do Ribeira, ou para acossar as comunidades tradicionais. Em 2007, sensibilizada por argumentos sociais e ambientais, a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou lei transformando o rio Ribeira de Iguape em “patrimônio histórico, cultural e ambiental”. A decisão inviabilizava Tijuco Alto e as demais usinas. Apresentado pelo deputado Raul Marcelo (PSOL), o projeto sensibilizou parlamentares de todo o espectro partidário — vale lembrar que a Assembleia era e continua a ser dominada por maioria conservadora. O então governador José Serra desfez a esperança, ao exercer seu poder de veto e derrubar a lei, com a conveniente omissão da mídia. Alguém se lembra de ter lido nos jornalões alguma reportagem a respeito?

Se vier a ser construída, Tijuco Alto não eliminará apenas a floresta. Um estudo do Instituto Sócio-Ambiental descreve, com base no próprio relatório de impactos sobre o meio-ambiente (RIMA) da obra, algumas de suas consequências. Elas incluem desalojamento de centenas de famílias (além das centenas já deslocadas com o processo de compra de terras desencadeado há anos pela CBA); inundação de solos férteis; pressão sobre os serviços de saúde e educação dos municípios de Ribeira e Adrianópolis (que receberiam centenas de trabalhadores temporários atraídos pela obra); assoreamento do rio e sepultamento, pelas águas, de sítios arqueológicos e cavernas. Os movimentos do Vale do Ribeira apontam outro aspecto: o desemprego de milhares de famílias que vivem da pesca, na região do estuário do rio, entre Iguape (SP) e Paranaguá (PA).

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Não é fácil lutar no Vale do Ribeira. Além da precariedade das condições de vida, há risco permanente de violência. Desde 18 de fevereiro, está desaparecido Laurindo Gomes, líder do quilombo de Praia Grande. Sumiu quando estava a caminho da Câmara Municipal de Iporanga (SP), onde reivindicaria a instalação de uma Comissão de Inquérito para investigar as razões da paralisação, pela prefeitura, das políticas públicas antes adotadas pelo município. O site de um dos movimentos em defesa das comunidades da região relata o ocorrido, em narrativa reveladora. “Por volta das sete da manhã (…) [Laurindo] dirigiu-se para as margens do rio Ribeira de Iguape, onde tomaria o barco (único veículo para sair do Quilombo). Carregava um balde de mel, algumas abóboras e uma mochila. Foi visto pela última vez por sua ex-esposa se dirigindo para o Rio. Ela escutou o ronco do motor do barco chegando. (…) Seu desaparecimento só foi percebido na quarta feira (23/02), quando seu filho, Lázaro, que estava na cidade para a mesma reunião, foi para o Quilombo levando a noticia de que ele não chegara na cidade (…) A Comunidade passou a procurá-lo, encontrando apenas marcas de suas pegadas e de onde depositara os volumes que carregava, na areia do porto. No local, sobrou uma abóbora.

“Na Delegacia de Iporanga foi registrado o B.O. de desaparecimento. Não houve, porém nenhum esforço para encontrá-lo. (…) Os moradores do Quilombo encontram-se amedrontados e abandonados. Para sair do Quilombo, inclusive os alunos para frequentarem a escola, são transportados de barco, que está em péssimas condições. Enfrentam diversas corredeiras ao longo do percurso. A estrada, por ora, só chega até a fazenda do atual ocupante da cadeira de Prefeito, que fica próxima ao Quilombo”.

Praia Grande é um dos quilombos que serão inundados pelas barragens, caso vencida a resistência das comunidades locais.

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O cipoal de dificuldades e ameaças que transparece no relato acima não impediu que surgisse, no Vale do Ribeira, algo que dialoga com as lutas sociais e ambientais travadas hoje em todo o Brasil – e acrescenta um elemento novo a elas. Trata-se de um socioambientalismo plebeu, para o qual a preservação da natureza é uma atitude incorporada às populações que convivem com ela – e não algo externo, superficial e cosmético.

Esta visão original afirma um ponto de vista claro, expresso com todas as letras no documento apresentado ao legislativo paulista: “Exigimos que o nosso modo de vida como Comunidades Tradicionais seja respeitado e reconhecido legalmente, como forma de conservação do Meio Ambiente, e não apenas os modelos criados nos gabinetes, como as Áreas Unidades de Conservação, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável e outros”.

Em outro trecho, o conceito é apresentado de modo ainda mais explícito e concreto: ”O Vale do Ribeira é a região do Estado que ainda preserva a Mata Atlântica. Quem a preservou? Fomos nós, os moradores das Comunidades Tradicionais. Hoje somos penalizadas por isso. Os Indígenas estão sem terra; os Quilombolas e Caboclos são multados a toda hora; os Caiçaras estão sendo expulsos da Juréia; os Pescadores que vivem da pesca artesanal estão sendo engolidos pela pesca predatória. Enfim, somos tratados como invasores dentro da nossa própria casa (…) É urgente uma mudança de paradigma na política ambiental do Estado de São Paulo, caso contrário estamos fadados a uma grande limpeza étnica”.

Esta ideia desdobra-se numa crítica clara ao ambientalismo de fachada defendido pelas autoridades estaduais: “O Governo e muitas Entidades Ambientalistas querem transformar o Vale do Ribeira num grande ‘palco’ para que os turistas que por aqui passarem possam usufruir da grande beleza natural, mas esquecem que há séculos vivem aqui as Comunidades Tradicionais responsáveis pela preservação dessa natureza e que devem ser tratadas com dignidade e não como invasoras”.

Avança, a seguir, para reivindicações concretas: “que o sistema de coivara que as Comunidades Tradicionais sempre utilizaram e que comprovadamente protege a fertilidade da terra seja reconhecido legalmente como uma forma de conservação ambiental”. [Por coivara, designa-se a queima de pequeníssimas extensões de mata, para roçar e plantar arroz, feijão, milho, mandioca. A prática, utilizada desde antes da chegada dos europeus, implica rodízio da terra, permitindo descanso. O não uso de fertilizantes químicos e inseticidas permite que o solo se recupere logo].

A esperança que morre no veto do ex-governador à lei ambientalista surge num elemento novo. As comunidades tradicionais já vão além da simples luta por direitos históricos. Ainda que em esboço, indicam o desejo de um novo projeto sustentável. Querem acesso a energia elétrica e se apropriar das conquistas contemporâneas. Debatem estas questões tendo como princípio a preservação da Mata Atlântica. Lançaram as sementes, falta cultivar os frutos.

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