quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Filosofia e cinema: tudo a ver (1set2011)

O sol é para todos
(To kill a mockingbird)

Tema musical e cartazes do filme "To kill a mockingbird"

Por Márcio Sotelo Felippe

Há cenas cinematográficas que quem viu não esquece. Chaplin caminhando pela estrada ao final de Tempos Modernos; Orson Welles murmurando “rosebud”; a angústia e a revolta de Marlon Brando dizendo “eu poderia ter sido grande”, em Sindicato de Ladrões.

A minha preferida é insuperável como arte cinematográfica captando um momento de humanidade: o final do julgamento do negro acusado injustamente de estuprar uma branca em O Sol é Para Todos (To Kill a Mockingbird).

O filme não costuma figurar nas listas dos dez mais, mas pode muito bem aparecer em algum lugar depois do décimo. Na minha lista é o primeiro. O AFI – American Film Institute - elegeu, na comemoração dos 100 anos de cinema, os 100 melhores filmes norte-americanos, e O Sol é Para Todos surgiu em 34º lugar. No entanto, o personagem central, Atticus Finch, (Gregory Peck) foi escolhido pelo AFI, dentre uma lista de 400 indicados, como o maior herói do cinema.

A metáfora que dá o nome original ao filme, e é sua chave e sentido, expõe a irracionalidade de estruturas sociais e um lado sombrio que mostramos no cotidiano das relações intersubjetivas.

Mockingbird é um pássaro que só existe na América do Norte. Não é o rouxinol, como supõe o tradutor brasileiro do filme. É do mesmo gênero do nosso sabiá, e tem a característica de imitar o canto de outros pássaros.

No diálogo que explica o título do filme e revela a metáfora Atticus Finch conta à filha Scout – a menina de 6 anos de cujo ponto de vista a história é contada - que seu pai havia lhe dado uma arma e lhe instruído sobre o uso que poderia fazer dela, com a advertência de que era um pecado “to kill a mockingbird” porque esses pássaros não são nocivos, cantam e nos deleitam, não estragam o jardim, não fazem ninho onde não devem. Apenas alegram a vida com seu canto.


Em todas as histórias que se entrelaçam no enredo a metáfora do pássaro expressa a condenação moral da violência inexplicável contra o outro: preconceitos raciais, sociais, sexuais, religiosos, culturais ou agir, surda e mesquinhamente, somente em função de seus interesses.


Atticus Finch é o advogado que defende o negro da acusação infundada de estupro de uma branca em uma pequena cidade do sul dos EUA. O negro, um trabalhador pacífico e solidário, ajudava casualmente a moça branca e recusou o seu assédio sexual. Perturbada (e por razões que o julgamento revela) a moça o acusa de estupro. Na pequena cidade sulista tornou-se um homem morto e o julgamento uma encenação.

Na casa vizinha de Atticus Finch vive um homem isolado pela família por insanidade mental. Os filhos de Atticus têm pavor dele, e praticam o ritual infantil de enfrentar o próprio medo aproximando-se de sua casa. Somente no final saberão que do seu quarto isolado o homem os protege e lhes deixa pequenos presentes nas redondezas.

Os dois homens – o alienado e o negro - são os evidentes mockingbirds do enredo, maltratados e marginalizados pela comunidade.

Voltando à cena memorável a que me referi, passa-se após Atticus Finch, designado pro bono pelo juiz, apresentar uma defesa impecável, desmontar a acusação, expor a estupidez do preconceito e desmascarar a mentira da suposta vítima. Mas a condenação é certa.

Brancos e negros assistiram o julgamento segregados. Brancos embaixo, negros em cima, no que seria um mezanino. Proferida a condenação, os brancos se retiram. Os negros não se movem. Atticus Finch arruma seus papéis e caminha para a saída. Quando passa abaixo do mezanino todos os negros se erguem em silêncio, reverencialmente. Um deles diz à menina Scout (de cujo ponto de vista a história é contada), filha de Atticus, a única branca na parte reservada aos negros: “levante-se, seu pai está passando”. Não há mais falas. Uma tomada do alto mostra a caminhada solitária de Atticus pela sala do julgamento e a homenagem silenciosa dos negros em cima.

Mostrei essa cena a alunos como um exemplo da moralidade de Kant, o imperativo categórico. Para Kant, uma conduta somente poderia ser moral se motivada pelo dever puro. Se na origem de uma conduta estiver qualquer outra causa (a aparência social, algum interesse do indivíduo singular, o receio de reprovação ou sanção, etc.) a conduta parecerá moral, mas não será moral.

A rigor, kantianamente, jamais podemos saber se uma conduta é efetivamente moral porque não temos acesso à mente do outro (para Kant isto está no plano da consciência, fora dos sentidos).

Mas nós sabemos que Atticus Finch é um homem superior. Ele está, claro, ciente de que os negros estão lá, mas em nenhum momento olha para cima na expectativa da aprovação, gratidão, louvor, reconhecimento ou aclamação pelo seu esforço.

Pela sua estatura moral, que neste momento o enredo já revelou, claro que não se trata de indiferença. Seu caráter prescinde de alguma forma de reconhecimento.

O roteiro (fiel ao romance que o originou) não contamina moralmente, no mais puro sentido kantiano, a cena. Atticus cumpriu seu dever com a justiça. Os negros reverenciam a figura de Atticus Finch e o seu cumprimento do dever contra a parte branca da cidade. Atticus, absorto na causa que acabou de perder, não percebe o gesto.

Os negros sabem que Atticus não percebeu o gesto. Nada fazem para que Atticus o perceba. Nenhuma palavra é dita. Nenhum aplauso. Nenhuma voz de louvor. Nenhuma aclamação. Tudo se resolve na reverência à humanidade do advogado. Tudo é como deve ser no puro plano da consciência. Porque podemos nos mostrar gratos como um gesto social; podemos nos mostrar gratos para que os outros nos reconheçam como pessoas que sabem expressar gratidão; podemos nos mostrar gratos para que reconheçam em nós uma moralidade que não temos mas nos dá ganhos sociais. No gesto empírico da gratidão haverá sempre uma suspeita de contaminação ética. A arte e a filosofia dessa cena é mostrar a reverência à humanidade do personagem Atticus como um gesto que se basta à consciência de cada um dos negros que lá estão. “Levante-se – um homem justo está passando”. A única fala ensina à criança a possibilidade dessa comunhão de consciências além dos sentidos, das palavras e dos gestos.

O filme termina com a tentativa de assassinato por vingança do filho de Atticus pelo pai da moça branca no meio da noite. O menino quase torna-se, assim, mais um “mockingbird”. Quem o salva, secretamente, na noite escura, é o vizinho alienado mental, que termina por matar o agressor. Somente Atticus e o xerife desvendam o fato, e vem outra cena memorável.


A legítima defesa da criança é clara para eles. Mas haveria uma prisão, um processo, a exposição pública de uma personalidade frágil e psiquicamente abalada, o que terminaria por destruí-la. E o próprio xerife recusa-se a “to kill a mockingbird”: “posso não ser muita coisa, Mr. Finch, mas continuo xerife de Macomb County. E Bob Ewell caiu sobre sua própria faca. Boa noite, sir.” E não há inquérito, processo ou julgamento.

É o dilema entre regra e princípio que contemporaneamente os juristas começaram a perceber. O que transparece na fala do xerife, e motiva sua decisão de consciência, é o receio do aniquilamento gratuito de um ser humano pela sua exposição ao clamor público que a regra positiva determinava.

O xerife realizou o Direito, digamos, com suas próprias mãos. Sua conduta deve ser tomada como um específico modo de funcionamento da Razão. Sendo o sentido do Direito (idealmente) a proteção da dignidade humana, a regra positiva, por si só, muitas vezes não a expressa. Sua racionalidade deve ser amparada por princípios, e princípios podem e devem excluir a aplicação da norma positiva em certos momentos.

“Matar mockingbirds” é uma grande metáfora. Um tiro de espingarda num pássaro inofensivo e cantor expressa a condenação moral do capitalismo, no qual quem produz a riqueza e os bens que fazem a sociedade funcionar é quem pior é tratado por ela. Expressa todas as formas de preconceito e intolerância, que aniquilam gratuitamente a alma e o corpo do outro. Expressa o terrorismo, que faz do extermínio de inocentes meio de ação política. Expressa o modo como a sociedade trata crianças famintas, abandonadas, velhos doentes, mulheres indefesas, homens sem trabalho, aos quais se nega a dignidade de uma vida útil e a auto-estima. Expressa certas relações intersubjetivas, como a violência doméstica contra a mulher. A ideia de transformar o mundo, no filme, está condensada na metáfora “to kill a mockingbird”.

Publicado no blog Allonsanfan em 19 de agosto de 2011. As imagens e o vídeo são um acréscimo meu,, e foram obtidas via busca na internet.

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