sábado, 15 de outubro de 2011

Um brinde aos educadores e uma reflexão sobre o nosso trabalho (15out2011)

Tempos de criança (Ataulfo Alves)
Ataulfo Alves


Educa o que nos exigiu forças de que nos julgávamos desprovidos. Esforços de que nos acreditávamos incapazes. Confrontos conosco mesmo de que tanto fugimos e tantas desculpas menores encontramos para não defrontar.

A quem Educa

Por Artur da Távola

Educa quem educará. E quem aprender a perder. Quem, ou cuja obra, permanecer muito depois do momento de educar. Educará quem for capaz de dar no presente, com decisão, coragem e sem culpas, tudo o que no futuro fizer lembrar - ainda que com dor mas se possível com muita alegria - o momento da educação.

Educar é perder sempre as batalhas do imediato. Menos o amor de quem percebe o quanto ele preside o gesto do educador. É perder qualquer pretensão do reconhecimento e saber que quando ele vier - se vier - já tempo não haverá para receber o agasalho de sua manifestação, nem como reparar as injustiças feitas, o silêncio, a falta do "muito obrigado". É perder porque é aceitar perdurar apenas na lembrança. É perder porque em qualquer sistema, em qualquer estrutura , em qualquer institucionalização de qualquer coisa sobre a face da terra, o verdadeiro educador estará ameaçando algo até mesmo tudo aquilo em que ele próprio acredita, porque o verdadeiro educador é o que acompanha as mutações da vida, dos tempos, dos comportamentos. É quem logo vê o abismo de imperfeições implícito no seu próprio ato de educar. Porque educar é educar-se a cada dia. E é ser capaz da equidistância de esquemas, sistemas ou fórmulas infalíveis e donas da verdade última das coisas.


Eu educo hoje com valores que recebi ontem para pessoas que são o amanhã. Os valores de ontem, os conheço. Os de hoje, percebo alguns. Dos de amanhã, não sei. Educo com os de ontem (os da minha formação)? Perderei os hojes e os amanhãs. Educo com os de hoje? Perderei o que havia de sólido nos de ontem e nada farei pelos de amanhã, que já serão outros? Educo com os de amanhã? Em nome de quê? De adivinhações? Da minha precária maneira de conceber um amanhã que escapa pelos desvãos meu cérebro?

Se só uso os de ontem, não educo: condiciono. Se só uso os de hoje, não educo: complico. Se só uso os de amanhã , não educo: faço experiências à custa das crianças. Se uso os três, sofro. Mas educo.

Por isso educar é perder sem perder-se. Sempre. É ameaçar o estabelecido. Sempre. Mas é tudo isso sendo, também, integrar. Viver as perplexidades das mutações; conviver honradamente com angústias e incertezas; ir dormir cravado de dúvidas, mas ter sensibilidade para distinguir o que muda do que é apenas efêmero; o que é permanente do que é renovado.

É dormir assim e acordar no dia seguinte renovado pelo trabalho interior e poder devolver ao aluno, ao filho ou amigo, a segurança, a fé, a confiança, formas éticas de comportamento, seu verdadeiro sentido de independência e de liberdade, seus deveres sociais consigo mesmo, com o próximo e com a sociedade, a parte que lhe cabe no esforço comum.

Educa quem educará. Quem for capaz de fundir ontens, hojes e amanhãs, transformando-os num presente onde o amor e o livre arbítrio seguem as bases. Educa quem educará porque capaz de dotar os seres dos elementos de interpretação dos vários "presentes" que surgirão repletos "passados em seus futuros".

O ser humano não é naturalmente bom, nem é naturalmente mau. O ser humano é um feixe de emoções em conflito, de poderes em confronto. Mas alicerces básicos em seu comportamento, comuns a qualquer latitude ou longitude do terráqueo. Educa quem os fortalece, quem é capaz de dar proteínas, vigor e confiança ao lado humano do amor, mais forte que o do ódio, tanto que permite a vida do homem sobre a face da terra. E só quem educa transforma, por mais que as pessoas se iludam com o resto.

Educa a velha professora de quem nos lembramos, sabe Deus porque, milênios depois, num momento em que sua lembrança não tinha razões aparentes para vir à tona, como o velho tio, o amigo, o pai e a mãe que saltam do passado com aquele olhar , aquela observação sobre a vida, à época julgados absurdos por nós. Educa aquele que só entendemos muitos anos depois e quando entendemos o espírito se liberta de antiga pressão, também amada de remorso enrustido.

Educa o que nos exigiu forças de que nos julgávamos desprovidos. Esforços de que nos acreditávamos incapazes. Confrontos conosco mesmo de que tanto fugimos e tantas desculpas menores encontramos para não defrontar. Educa quem integra, sempre e sempre pedaços de uma realidade realmente mais ampla do que nós . E só quem educa, em qualquer nível de atividade, merece viver integralmente as paradoxais intensidades de que é feita a vida.


TÁVOLA, Artur da. Mevitevendo: Crônicas. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1986, p. 29/30.


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