No auge da crise, economistas clamavam pela injeção de trilhões no salvamento dos bancos. Mas, tão logo a recuperação dos ativos fomentou a percepção de volta ao normal, os olhares se dirigiram aos desequilíbrios fiscais e à dívida pública, transformando uma crise financeira privada em uma crise financeira pública
Por Maryse Farhi
A Crise financeira iniciada em meados de 2007 no segmento de crédito imobiliário nos Estados Unidos adquiriu contornos sistêmicos após a falência do Lehman Brothers em setembro de 2008 e foi grave o suficiente para ser frequentemente qualificada como a mais séria e destrutiva desde 1929. Crises dessa magnitude têm o poder de trazer à tona disfunções econômicas que passam praticamente despercebidas nos períodos de bonança. A percepção dessas disfunções alimenta reações extremas do mercado, que vão da especulação desenfreada ao pânico.
A primeira disfunção veio à luz no início da crise. Ela decorre da convicção da maioria dos economistas e policy makers da eficiência dos mercados, o que levou a normas extremamente frouxas de supervisão e regulação financeira. Essas normas permitiram a interpenetração, de modo quase inextricável, entre os balanços do sistema bancário e do chamado Shadow Banking System (SBS, ou sistema bancário na sombra), constituído por investidores institucionais (seguradoras, fundos de pensão, fundos de investimento convencionais e hedge funds), veículos especiais de investimento (SIVs, conduits ouSIV-lites) e os grandes bancos de investimentos (brokers-dealers). Tais instituições não bancárias montaram estruturas altamente alavancadas, viabilizadas pelos derivativos de crédito e pelos produtos estruturados negociados em mercados de balcão. Não foi um acaso esses agentes terem protagonizado os episódios mais críticos da crise financeira.
Essa configuração replicou, multiplicou e redistribuiu, globalmente, os riscos presentes no sistema, bem como os prejuízos deles decorrentes para uma grande variedade de instituições financeiras. Assim, ela foi responsável pela transformação de uma crise de crédito clássica (na qual o somatório dos prejuízos potenciais, correspondente aos empréstimos concedidos com baixo nível de garantias, é conhecido) em uma crise financeira sistêmica em âmbito internacional. Passados mais de quatro anos de sua eclosão, em meados de 2007, continua impossível mensurar seu impacto nos balanços das instituições financeiras bancárias e não bancárias.
A segunda disfunção está relacionada às falhas inerentes à concepção e à introdução do euro. Há muito denunciada pelos “eurocéticos”, ela só emergiu no final de 2009. A moeda comum europeia foi adotada com base em normas que estabeleciam uma política monetária única, que devia servir a economias muito diversas e não contemplava mecanismos de ajuste que permitissem absorver choques. Essas mesmas normas procuraram suprir a falta de união fiscal entre os países-membros por meio do estabelecimento de diretrizes de política fiscal que foram frequentemente contornadas.
No prolongamento da crise financeira, verificou-se que os países que se encontram em situação de fragilidade, não sendo emitentes do euro (prerrogativa absoluta do Banco Central Europeu, BCE), não têm a possibilidade de promover uma desvalorização cambial que restabeleceria sua competitividade internacional e/ou de emitir moeda para pagar suas dívidas, consubstanciadas em títulos denominados na moeda única europeia.
Após a falência do Lehman Brothers, governos e bancos centrais dos países desenvolvidos passaram a realizar elevados volumes de injeções de capital público na forma de assistência de liquidez às grandes instituições, garantias a depositantes e credores, injeções de capital em instituições financeiras, além de lançar mão de vastos recursos para reanimar suas economias. Essas imensas e coordenadas intervenções públicas suscitaram a esperança de que os governos procurariam evitar a repetição dos erros de política econômica da grande depressão de 1929-1933 que tinham então contribuído para o aprofundamento e a extensão da depressão econômica. De certo, a recessão do período foi muito menor do que poderia ter sido, se comparada à da Grande Depressão. Entretanto, o objetivo essencial dessas intervenções foi evitar o risco sistêmico de um desmoronamento do sistema financeiro como um todo. Dessa forma, o resultado dos maciços aportes públicos foi a transferência de parte substancial da imensa alavancagem do sistema financeiro para o setor público.
No ápice da crise financeira, bancos e economistas clamavam em alto e bom som pela injeção de trilhões de dólares no “salvamento” de Wall Street e demais praças financeiras dos países desenvolvidos. Pode-se afirmar que a criação de nova dívida e a elevação dos déficits públicos foram, inicialmente, aplaudidas por eles. Entretanto, tão logo a recuperação dos preços dos ativos, a partir do segundo trimestre de 2009, fomentou a percepção dos participantes dos mercados financeiros do retorno ao business as usual, as atenções dos agentes dos mercados financeiros se voltaram para os desequilíbrios fiscais e os estoques de dívida pública, numa dinâmica perversa em que as expectativas privadas e a supremacia dos mercados transformaram uma crise financeira privada em uma crise financeira pública.
A vez do euro
Isso marcou o início da fase seguinte da crise, a da revelação das disfunções da zona do euro. A pressão dos mercados se estendeu tanto a países em que a situação fiscal já estava deteriorada antes da crise (caso da Grécia) quanto a outros em que o déficit público resultava da queda de receita decorrente da crise e dos importantes gastos realizados para atenuar seu impacto no sistema bancário e no nível de emprego (Irlanda). Também atingiu países que vinham tendo desempenho econômico mais fraco que a média europeia (Portugal, Itália e Espanha).
Nesse contexto, as políticas macroeconômicas contracíclicas foram abandonadas pelos países europeus que definiram a volta ao equilíbrio fiscal como sua grande prioridade. Tal guinada não ficou confinada aos países da zona do euro que enfrentam uma crise da dívida soberana (dificuldades dos governos para obter recursos a custos não muito elevados), como os acima citados. Ela se estendeu a outros países não visados pelos mercados, como a Alemanha e a França, bem como a países que, embora pertençam à Comunidade Europeia, não aderiram à moeda única, como a Inglaterra e a Hungria. A convergência dos objetivos macroeconômicos para a busca do equilíbrio fiscal nos países europeus exprimiu o fato de que as ideias conservadoras recuperaram boa parte do terreno perdido durante a crise.
Porém, severos ajustes fiscais criam círculos viciosos porque induzem quedas acentuadas da atividade econômica, que acarretam reduções das receitas fiscais, que, por sua vez, ampliam o déficit fiscal. Não se pode deixar de mencionar que a situação foi enormemente agravada pelas hesitações dos representantes dos principais países da zona do euro − Alemanha e, em menor medida, França − e por reiteradas declarações públicas mostrando extrema relutância em socorrer os países em dificuldade. Tais declarações tinham objetivos políticos domésticos: não desagradar aos eleitores que, supunha-se, seriam contrários a novas despesas fiscais para acudir outros países. Mas elas só pioraram as expectativas e suscitaram fortes reações dos agentes de mercado, levando a um importante aumento da percepção de riscos e a uma acentuada rejeição dos investidores em financiar esses países, num episódio semelhante aos sudden stops de fluxos de capitais que atingiram as economias emergentes na década de 1990. Agravando ainda mais a situação, o BCE elevou a taxa básica de juros em abril e junho de 2011 por temer uma inflação mais forte que a esperada.
Uma crise pública desse tipo tem um enorme potencial de voltar a se transformar numa crise privada, à medida que os títulos soberanos estão presentes em elevados volumes nos ativos dos balanços dos grandes bancos internacionais, inclusive porque eram considerados ativos sem risco. Essa evolução aponta que o grau extremamente elevado de alavancagem nos balanços das instituições financeiras, considerado aceitável pelos agentes de mercado (em boa parte, porque estava envolto em sombras), passou a ser considerado excessivo quando foi transferido para o setor público. Em outras palavras, a imensa expansão dos mercados financeiros alavancados passou a envolver montantes tão elevados que sua revelação nos balanços do setor público levanta dúvidas quanto à solvência deste último que, se confirmadas, resultarão numa nova crise financeira privada.
Em contraste com as políticas adotadas na Europa, prevaleceu nos Estados Unidos a visão de que o abandono de políticas anticíclicas era prematuro. Mas a política fiscal ficou muito aquém do necessário para promover o crescimento do nível de emprego e conduzir a uma recuperação econômica sustentável. Ela se concentrou em renúncias fiscais para incentivar a compra de automóveis e de imóveis e não foi renovada no início de 2010, antes mesmo das eleições de novembro, em que os democratas perderam a maioria no Congresso, levando à tentativa de impor um forte ajuste fiscal ao governo do presidente Barack Obama.
Diante da dificuldade de adotar novas medidas fiscais anticíclicas, a tarefa ficou essencialmente nas mãos do Federal Reserve, que lançou mão, em 2010, de novo “afrouxamento quantitativo”, anunciou que manteria os juros baixos “por um período prolongado” e, em setembro de 2011, decidiu vender títulos do Tesouro norte-americano de curto prazo e comprar os de mais longo prazo, de forma a reduzir o diferencial de taxas entre esses vencimentos, numa operação denominada Twist.
Assim, as autoridades econômicas das principais economias desenvolvidas deram respostas praticamente opostas ao dilema ao qual estão confrontadas: manter os estímulos macroeconômicos por temerem uma dupla recessão e/ou um processo de deflação, ou retirar parte ou a totalidade desses estímulos por considerarem que a recuperação econômica em curso era sustentável e/ou que o déficit das contas públicas tinha chegado a um ponto crítico e que seu controle se tornara prioritário. Essas divergências,que foram explicitadas ao longo do processo por críticas mútuas, indicam que as lições da crise de 1929 não foram aprendidas, já que elas constituem − agora como então − um fator agravante da tênue recuperação econômica, condicionam a evolução da economia mundial e têm agravado seus desequilíbrios.
Limites das políticas anticíclicas
Os dados apontam que, embora as intervenções públicas tenham tido sucesso em reverter o processo de deflação de ativos, nenhuma das políticas adotadas tem sido capaz de atingir os objetivos fixados − seja para resolver os desequilíbrios fiscais, seja para restaurar um crescimento econômico sustentado e reduzir os elevados níveis de desemprego. Esse insucesso suscita a hipótese de que, perante a magnitude da crise do capitalismo com dominância financeira (financed led capitalism), instrumentos fiscais e monetários estão atingindo seu limite. Em outras palavras, quando a crise atinge mercados financeiros que se tornaram maiores que os Estados, a correlação de forças é favorável aos mercados e sua busca de rentabilidade a qualquer custo, fazendo que as intervenções públicas esbarrem em seus limites. Tais limites podem ser dados tanto pela pressão dos mercados quanto pelo temor dos Estados de perder a confiança dos mercados, levando-os a um ajuste fiscal precoce.
Dessa forma, as medidas anticíclicas, antes consideradas eficazes, mostram-se suficientes apenas para impedir o aprofundamento da crise e garantir a solvência das instituições financeiras, mas esbarram rapidamente nesses limites quando passam a ter por objetivo a elevação da demanda agregada e a promoção do retorno ao crescimento econômico. As reações negativas dos mercados financeiros à operação Twist, recentemente decidida pelo Federal Reserve, mostram sua percepção da ineficácia dessa política diante da magnitude do desafio de reduzir o desemprego e retomar o crescimento.
Tal hipótese também deve ser considerada à luz das divergências políticas, normais em países democráticos, mas que condicionam os futuros rumos econômicos. Governantes fortes e decididos ainda podem reverter a correlação de forças entre Estados e mercados, coordenando entre si as políticas macroeconômicas. Infelizmente, o quadro atual está muito distante disso. Na União Europeia, a vitória dos conservadores na Inglaterra resultou na adoção de uma contração fiscal muito mais intensa do que a que propunham os trabalhistas. Nos países que adotaram a moeda única europeia, as dissenções internas e o fato de que o processo decisório exige unanimidade têm dificultado a criação de soluções mais amplas. As ameaças públicas do governo alemão de que países pertencentes à área do euro podem quebrar se não aceitarem as exigências de duras medidas contracionistas estão ligadas à percepção de que seu eleitorado não é favorável ao socorro a outros países que adotaram a moeda única. Eleições realizadas no início de 2011 na Finlândia deram a vitória aos que se opõem à política europeia de gestão da crise da dívida. Em outros países, como Itália e França, sentimentos de xenofobia se afirmam a ponto de poder vir a ter expressão eleitoral. Já nos países submetidos a políticas recessivas, o descontentamento popular se expande e ameaça expressar-se nas urnas. Nos Estados Unidos, o atual confronto entre republicanos e democratas no Congresso é muito intenso, conforme indicado pelas propostas de ajustes fiscais extremos e suscetíveis de criar ressentimentos sociais, em virtude da realização de eleições presidenciais em 2012. Do resultado desse confronto e das eleições dependerá o rumo da maior economia do planeta.
Nenhuma das disfunções econômicas apontadas foi ainda resolvida. Enormes obstáculos têm impedido uma profunda mudança na supervisão e regulação financeira, para minimizar a fragilidade do sistema financeiro desregulamentado que permitiu o surgimento e fomentou a expansão do SBS. O fato de o andamento dessas reformas ter deixado muito a desejar amplia o risco de repetição de eventos análogos. Quanto à situação na Europa, muito pouco se fez para corrigir os defeitos “genéticos” da moeda única europeia. A deterioração continua sua marcha inexorável, agravada pela ameaça de uma iminente moratória da Grécia, que pode desencadear um efeito dominó em outros países da região.
Uma terceira fase da crise poderá ter impactos tão mais devastadores quanto menor for o raio de manobra das políticas anticíclicas e de aporte de liquidez, pelo menos até que as autoridades econômicas e políticas, diante da ameaça de uma deterioração econômica extrema, decidam que é imperativo agir em conjunto para impedi-la. Resta esperar que, neste momento, verifique-se a afirmação de Churchill, num discurso à Câmara dos Comuns, em 1935: “Afalta de visão, a falta de vontade para agir quando seria simples e eficaz, a falta de clareza de raciocínio, a confusão duram até que a emergência aconteça, até que o instinto de autopreservação atinja seu nível mais elevado. Essas são as características que constituem a repetição sem fim da história”.
Maryse Farhi: Professora doutora do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisadora visitante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique.
Trazido do sítio Projeto Nacional, onde foi postado em 18 de novembro de 2011 sob licença CC-by-sa-2.5.
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