Gaudêncio Sete Luas (Marco Aurélio Vasconcelos / Luiz Coronel)
Coral da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (Reg. Luciano Lunkes)
Zero Hora, os dissidentes do MST e a cultura do medo como forma de alienação
A saída de 51 militantes do MST descontentes com a aproximação do movimento com os governos do PT e com a burocratização e acomodação da luta, motivou duas reportagens do jornal Zero Hora na última semana. A primeira, de quinta-feira, é uma matéria sem grandes controvérsias, mas parece não ter agradado a alguém: no domingo, uma reportagem de duas páginas, assinada por Carlos Wagner e Humberto Trezzi, é um festival de juízos de valor, palavras de ordem em tom editorializado, e até manipulações absurdas do conteúdo da carta divulgada pelos dissidentes.
O título, manchete de capa, dá o tom, e a linha de apoio complementa: “Racha do MST ameaça criar grupo radical” – “Cisão histórica no movimento abre terreno para a formação de célula extremista”. Radical e Extremista são adjetivos que vão permear toda a reportagem, e colocar subjetivamente o posicionamento do jornal, tentando impor medo à população, criar logo no nascedouro uma postura negativa da sociedade em relação a qualquer atividade que possa vir a ser desenvolvida pelos lutadores sociais que acabam de deixar o MST.
A linha de apoio da matéria chama mais uma vez: “Zero Hora reconstitui a histórica reunião que sacramentou o racha no movimento dos sem-terra e criou uma nova organização que pode se tornar o embrião de uma célula voltada para ações extremas”. Mais uma vez o extremismo. E já a primeira afirmação que não é verdadeira: “criou uma nova organização”. A verdade, admitida no próprio corpo da reportagem, é que ainda não há rumo certo para os dissidentes, tampouco sabe-se se irão atuar juntos.
A segunda afirmação que não se relaciona com a verdade vem mais ou menos pela metade do texto, no 5º parágrafo: “Basta ler a carta escrita por eles para ter essa certeza: lá está redigido que o MST abandonou a luta radical e passou a mobilizar bases apenas para manifestações dentro da lei, o que desagrada aos dissidentes”. É mentira. AQUI você pode ler a íntegra da carta, e verá que não está redigido que o MST abandonou a luta radical – embora essa crítica esteja implícita, há apenas uma vez a palavra “radical” na carta, e não é nesse contexto –, muito menos que as manifestações “dentro da lei” desagradam aos dissidentes. A carta não cita nenhuma vez as expressões “dentro da lei”, “legal” ou similares.
No texto principal da matéria, “radical” ou seus derivados aparece quatro vezes em 12 parágrafos. Há ainda uma vez “extremista”. Além disso, há um parágrafo inteiro dedicado a enumerar o que teria sido “destruído” quando o MLST, uma dissidência do MST surgida em 1994, ocupou (ou “invadiu”, como diz ZH) o Congresso Nacional. O texto diz que “Esse grupo ganhou projeção nacional em 2006, ao invadir o Congresso. Durante a manifestação, cem militantes do MLST destruíram tudo que encontraram pela frente, incluindo (…)”, e aí seguem-se oito linhas listando a “destruição”.
A seguir, mais um grupo é citado, uma espécie de “corrente” do MST, liderada por José Rainha. Sobre ele, Wagner e Trezzi escrevem: “se notabiliza por invasões sistemáticas de terras e algumas depredações, táticas que serão retomadas pelos rebeldes que lançaram o manifesto em Viamão. Basta ler a carta escrita por eles para se ter essa certeza”, e então vem a mentira citada e desmascarada dois parágrafos atrás. São, então, dois grupos citados, cujas ações relatadas são descritas como violentas, e que os funcionários de Zero Hora tentam relacionar com os novos dissidentes.
Os dois parágrafos seguintes da matéria falam em uma “disputa entre organizações de esquerda” pelos dissidentes, mas não há fonte citada nem nominalmente nem omitindo identidade. Soa a especulação ou informação plantada, já que não há qualquer tipo de referência à origem da “informação”.
Há ainda uma entrevista com o agrônomo Zander Navarro, que legitima suas críticas ao MST por ter sido apoiador do movimento 30 anos atrás, mas que rompeu com as lutas pela reforma agrária defendendo a acomodação entre agricultura familiar e agronegócio. Procurando por seu nome em algum site de buscas é fácil encontrar artigos e entrevistas em que faz exatamente as mesmas declarações que fez a Zero Hora, ironizando, desmerecendo e debochando dos integrantes do MST. Nas cinco perguntas, uma vez aparece “extremista”, uma vez aparece “radical” e, na última questão, é sugerido que os dissidentes possam vir a praticar sequestros (“Há espaço para que se transformem em algo, como o EPP paraguaio, que sequestra fazendeiros?”).
O entrevistado diz que uma postura “anti-intelectual” sempre marcou o MST, pois o movimento teria nascido de “setores católicos resistentes ao estudo”. Afirma ainda que “o manifesto reflete uma inacreditável leitura da realidade à luz da conjuntura vivida no Brasil. Ou seja, demonstra a miopia e o espantoso estreitamento dos debates internos do MST”. Depois fala na prevalência de “uma profunda ignorância política de militantes do MST”, e em “abissal desconhecimento de setores ligados aos temas rurais, incapazes de perceber que o mundo rural brasileiro cruzou um ‘divisor de águas’ nos anos 90, sendo atualmente uma máquina de produção de riquezas”. Para quem são essas riquezas não é uma questão colocada, assim como a simpatia de Zander Navarro às políticas de Fernando Henrique Cardoso na área da agricultura, expressas em outras entrevistas. Por fim, o especialista de Zero Hora chama o manifesto de “politicamente ridículo, uma manifestação de infantilidade”.
A referência à possibilidade de atuação dos dissidentes em sequestros, citada aqui há dois parágrafos e colocada na última pergunta da entrevista com Navarro, volta a aparecer na retranca (pequeno texto anexo à matéria principal) entitulada “Ex-militantes cogitam formar ‘Tele Protesto’”. Os repórteres citam como fontes quatro dos dissidentes, que não quiseram ser identificados, e diz que “cogitam agir como uma espécie de tropa de choque da esquerda – uma espécie de Tele Protesto: se chamados, vão atuar de forma decisiva em invasão de fazendas, ocupação de edifícios, bloqueio de estradas e impedimento de atividade de servidores”. E completa com um exemplo claro de “não-notícia” que tenta induzir ao medo: “Não é cogitada, até o momento, tomada de reféns”. Se não é cogitada, porque constar na matéria? Apenas para assustar, para plantar na cabeça do leitor a possibilidade, e é para reforçar essa imagem que está ali a expressão “até o momento”.
Durante toda a cobertura de domingo, sete vezes foi usada pelos repórteres e editores a palavra “radical” ou suas derivadas, quatro vezes “extremismo” ou assemelhados, e duas vezes foi sugerida ou afirmada a possibilidade de que os dissidentes venham a praticar sequestros. Tudo isso além de duas passagens do texto que não se alinham à realidade objetiva. Esse é o saldo de uma reportagem que objetiva readequar o tom relativamente sereno da matéria de quinta-feira à real linha editorial e às cotidianas formas de atuação do Grupo RBS e de seu principal jornal.
Do sítio Jornalismo B, 28 de novembro de 2011. As imagens são daquela postagem e a charge de Rafael Balbueno é da postagem de 30 de novembro no mesmo sítio.
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