A Corte Suprema argentina dissipou as dúvidas sobre o aborto legal: toda mulher tem esse direito, se houve uma violação. Além disso, os juízes disseram que não é necessária queixa judicial de abuso. Eles estabeleceram diretrizes para a Justiça e o sistema de saúde.
Por Irina Hauser | Página|12
"Longe de ser banido," o aborto "é permitido e não punível" quando "a gravidez resultou de estupro." Vale para qualquer mulher. É um direito que deve ser interpretado de forma "ampla" e não "discriminatória" que o limitem àqueles com deficiência mental. Interromper a gravidez produto de abuso sexual não requer qualquer tipo de autorização burocrática ou judicial. Isto foi estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, finalmente, em uma decisão que esclarece que esta é a única interpretação possível do Código Penal e adverte que qualquer tentativa de impedir o acesso ao aborto legal só coloca as mulheres em uma nova situação de "violência ", a "institucional". O tribunal exortou as autoridades da Justiça e os médicos a parar de julgar esses casos, uma "prática" que qualificaram tanto de "desnecessária e ilegal" quanto de "censurável porque obriga a vítima do delito a expor publicamente sua vida privada e também é contraproducente porque a demora que produz põe em risco tanto o direito à saúde da requerente quanto o seu direito de acesso ao aborto em condições seguras. "A resolução ordena que as autoridades em níveis nacional, provincial e portenho apliquem "padrões elevados" e "protocolos hospitalares" para resolver "abortos não puníveis para a assistência integral a todas as vítimas de violência sexual."
A simples menção da palavra "aborto" foi tabu na Corte anos atrás, antes da sua renovação em 2003. Se surgia, aparecia tingida de crenças religiosas, valores culturais ou princípios morais. A mesma lógica que fez com que por décadas a resposta tanto do sistema de saúde quanto dos tribunais tenha sido introduzir as grávidas vítimas de violência sexual em labirintos legais sem fim que agravavam a sua situação ao invés de as amparar. Agora, a alta corte decidiu retirar o assunto destes "temperos" e "definir uma doutrina" que resolva "como interpretar o Código Penal", afirmou ontem o Presidente da Corte, Ricardo Lorenzetti, ao apresentar em sociedade a sentença, que pediu o descolamento da discussão pela despenalização do aborto em geral. A decisão foi unânime em seus resultados gerais, apesar de que dois juízes - Enrique Petracchi e Carmen Argibay - tenham feito votos em separado, mais limitados.
"Há uma seqüência extensa de casos por todo o país que dão ao tema uma gravidade que requer solução institucional", disse Lorenzetti. A judicialização dos abortos não puníveis, disse aos jornalistas, "afeta os direitos da mulher" e mostra que "o sistema não está funcionando bem", avaliou. Com esse diagnóstico, explicou, a Corte Suprema decidiu admitir como caso de teste o de A. G., uma adolescente de Comodoro Rivadavia que foi violentada por seu padrasto quando tinha 15 anos. Sua mãe optou por levar o pedido de aborto à Justiça para que fosse feito em um hospital público, de modo a colher amostras genéticas que serviriam para provar o estupro. Na Justiça Criminal, juiz e procurador declararam-se incompetentes, a Vara da Família rejeitou a petição em primeira e segunda instâncias e, quando a gravidez de A. G. tinha 20 semanas, a Corte Suprema de Chubut mudou o enfoque e ordenou que o caso fosse enquadrado como o de um aborto legal, não punível. Ainda que tenha descartado a necessidade de autorização, isso foi feito enquanto a jovem "apresentava sintomas depressivos" e "ideias suicidas" frente uma gravidez que avançava e era "vivida" por ela como "um evento raro, invasor".
O aborto foi realizado em 11 de março de 2010. Mas um advogado-geral adjunto da província recorreu ao Tribunal invocando "direitos do nascituro" e argumentando que o aborto só podia ser autorizado se a vítima fosse "idiota ou demente" de acordo com sua interpretação do inciso nº 2 do artigo 86 do Código Penal, a mesma habitualmente usada por muitos de seus colegas e juízes. Para a Corte Suprema, a história do A. G. é "suscetível de repetição." Não importa se o aborto já foi feito. Pela controvérsia histórica e legal, o mesmo poderia acontecer com outras mulheres. "Queremos evitar isso", disse Lorenzetti. Também disse que a Argentina foi observada por organizações internacionais, incluindo o Comitê de Direitos Humanos da ONU e o Comitê dos Direitos da Criança, e foi intimada a remover os obstáculos que impedem o acesso a abortos não puníveis. Ignorar o assunto pode "comprometer a responsabilidade do Estado argentino", admite a decisão da Corte.
O voto da maioria dos juízes tem dois eixos:
- Um define os alcances do inciso 2 do artigo 86 do Código Penal, que fixa que não é punível o aborto se a gravidez é produto de estupro "cometido com uma mulher idiota ou demente". Para a Corte, a única distinção que faz a lei é que quem sofre de falta de capacidade mental necessita que alguém a represente para consentir a intervenção médica. Qualquer outra leitura, dizem os magistrados, é uma "distinção não razoável de tratamento do qualquer outra vítima de delito análogo" quando, ademais, a obrigação estatal é proteger a todas as vítimas de violência sexual. "A pretensão de exigir a todas as outras vítimas de um delito sexual que levem a termo a gravidez que é consequência de um ataque contra os seus direitos mais fundamentais, resulta, sob qualquer aspecto, desproporcionada e contrária ao postulado (...) que impede que seja exigido das pessoas que façam, em benefício de outras ou de um bem coletivo, sacrifícios de envergadura impossível de ser mensurado".
"Não é punível toda interrupção de gravidez que seja consequência de um estupro, independentemente da capacidade mental da vítima", dispara a Corte de forma contundente. Para desarticular a argumentação do advogado-geral adjunto chubutense, os magistrados supremos dizem que nem a Constituição e nem os tratados de direitos humanos subscrito pela Argentina - e nos quais ele se baseia - proíbem a realização de abortos em casos de gravidez resultante de violação, mas, ao contrário, impede que os mesmos sejam punidos em função dos princípios de igualdade, dignidade e legalidade. Tampouco dizem algo do direito à vida ou os abortos em geral. Nesse campo de abrangência afirmam que há que se ler o artigo 86 (que define as permissões para abortar), cuja vigência e constitucionalidade ratifica.
- O outro eixo alude às consequências palpáveis da judicialização de abortos não puníveis através da exigência de uma autorização judicial. "Segue-se mantendo uma prática contra legem (contra a lei) fomentada pelos profissionais da saúde e convalidade por distintos operadores dos poderes judiciais nacionais e provinciais (...) exigindo ali, onde a lei nada exige, requisitos tais como a solicitação de uma autoridade para praticar a interrupção da gravidez fruto de estupro, o que termina adquirindo características intoleráveis à luz das garantias e princípios constitucionais". Neste ponto, a Corte Suprema questiona que fica exposta "a vida privada" da vítima e se põe em risco o "direito à saúde" e a um aborto "em condições seguras".
A Suprema Corte é taxativa: não se pode pedir autorização alguma de um juiz a uma mulher que pede acesso a um aborto nessas circunstâncias. Basta que se firme uma declaração juramentada que consigne ante o médico a situação de abuso, nem sequer é imprescindível que haja uma denúncia penal. Do contrário a Justiça estaria interpondo, diz a resolução, "um obstáculo extra" que "entorpece uma situação concreta de emergência sanitária". "Este tribunal - afirma a resolução - vê-se na necessidade de advertir aos profissionais da saúde sobre a impossibilidade de eludir suas responsabilidades profissionais" e "recorda aos operadores dos distintos poderes judiciais do país que", segundo as exceções do Código Penal, "é a grávida que solicita a prática, junto com o profissional da saúde, quem deve decidir levá-la a cabo, e não um magistrado a pedido do médico".
Traduzido por Aquiles Lazzarotto. O texto original em espanhol pode ser acessado aqui.
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