sábado, 31 de março de 2012

A centralidade ignorada do Pico Petrolífero (31mar2012)

Por Jorge Figueiredo [*]

É um dos paradoxos da nossa época que a questão mais importante do século XXI, aquela que vai marcar a nossa geração e todas as que hão de vir, seja quase totalmente ignorada pela maior parte dos mass media, dos responsáveis políticos, dos economistas e a generalidade da população. Refiro-me ao Pico de Hubbert, ou Pico máximo da produção petrolífera possível no mundo.

Se o petróleo barato e abundante permitiu o desenvolvimento acelerado do mundo no século XX, a situação de penúria no século XXI anuncia um quadro económico totalmente diferente,  pois não existe qualquer substitutivo para a quantidade de petróleo agora (ainda) consumida pelo mundo (cerca de 85 milhões de barris por dia).

O fim anunciado da era do petróleo marca um momento crucial e decisivo nos destinos da humanidade, assinala um novo paradigma histórico. Ele provoca problemas muito complicados e que começam desde já. Após o fim, nada será como dantes – mas muito antes do fim o problema começa já a manifestar-se.

Tal como nos romances de mistério, o melhor esconderijo para um objeto é um lugar que está à vista de todos. No caso do Pico Petrolífero, ele também está à vista de todos – mas parece que poucos o veem. Praticamente TUDO da história contemporânea pode ser explicado e entendido à luz do Pico Petrolífero – é a questão central do nosso tempo.

Na verdade, pode-se classificar todos os países produtores de petróleo do mundo em duas grandes categorias: aqueles que já atingiram o Pico (a grande maioria, México inclusive) e os que ainda não o atingiram. Estes últimos são constituídos por poucos países, a maior parte deles pequenos produtores do ponto de vista quantitativo. Os únicos grandes produtores que ainda não atingiram o pico são o Brasil e Angola.

Muitos entendem (incorretamente) que a questão do Pico seja a quantidade absoluta de petróleo ainda remanescente no mundo. Não é. A questão crucial é, sim, a da taxa de produção possível. O mundo já atingiu a taxa máxima de produção possível e nada há a fazer quanto a isso. As pseudo soluções apregoadas pela mídia, tais como os petróleos não convencionais (como o óleo de Bakker, os xistos betuminosos do Canadá, o deep offshore, o polar, os biocombustíveis líquidos, renováveis em geral, etc.) não podem de modo algum colmatar o déficit da produção de petróleo convencional que se avizinha.


O ratio EROEI

Na verdade, todas as soluções supletivas para colmatar o défice da produção de petróleo convencional deparam-se com um obstáculo maior e inultrapassável: o do ratio EROEI (Energy Returned On Energy Inputed) [relação entre a energia obtida e a energia gasta para a sua obtenção]. Este ratio é inexorável e implacável. Ele tem a grande vantagem de recorrer a unidades puramente físicas, pondo de lado ilusões monetárias. Para cada barril de petróleo investido na produção de petróleo obtém-se um retorno cada vez menor. Na década de 1930 obtinham-se cerca de 100 barris de petróleo por cada barril investido na sua produção. Hoje, esta proporção é muito menor e andará em torno dos 15. Em alguns casos de petróleo não convencional a proporção é ainda pior. Exemplo: a exploração dos xistos betuminosos que só resulta em cerca de três a quatro barris de produção por cada barril investido (sem falar no gigantesco desperdício de gás natural necessário à sua produção).

No entanto, o objetivo desta comunicação não é expor tecnicalidades relativas ao Pico Petrolífero e sim examinar as suas consequências econômicas, sociais e políticas. Para as questões técnicas, podem-se consultar os numerosos trabalhos de Colin Campbell, Jean Laherrere, Robert Hirsch, Gail Tverberg assim como os textos da ASPO (Association for Study of Peak Oil).

Quando se fala em Pico Petrolífero toda a gente pensa imediatamente nos aspectos geopolíticos do problema. Este é, naturalmente, o aspecto mais evidente. Basta ver as sucessivas agressões imperialistas para a captura das reservas remanescentes no mundo, com as invasões do Iraque, do Afeganistão, da Líbia, as ameaças atuais à Síria e ao Irã, a criação pelo governo dos Estados Unidos de um Comando para a África nas suas forças armadas, etc. As guerras predatórias por recursos são hoje notícias diárias dos jornais.

Esses são os aspectos ostensivos que estão à vista de todos. Mas há também aspectos mais sutis que se estão a verificar neste momento e cujas causas profundas são o Pico Petrolífero. Tomemos um exemplo aleatório, um dentre muitos, para ilustrar: o caso da recente Revolução Egípcia. Pode-se afirmar que teve como causa subjacente a ultrapassagem do pico. Quando a produção de petróleo do Egito começou a declinar, os rendimentos das exportações do mesmo consequentemente começaram a diminuir. Mas estes constituíam uma fonte de receita importante do Orçamento de Estado egípcio. Grande parte benefícios sociais do seu povo (educação, saúde, etc.) era assim financiada e tais benefícios começaram progressivamente a contrair-se. Portanto, teve início aí a insatisfação social, que finalmente chegou à grande revolta popular conhecida de todos. Este exemplo dá uma ideia de algo que se está a passar em muitas partes do mundo.

Entretanto, podemos e devemos generalizar indo um pouco mais além no nível de abstração. Pode-se também afirmar que o atual endividamento generalizado – Estados, municipalidades, famílias, empresas não financeiras e financeiras – nos principais países capitalistas do mundo tem como causa profunda o início do esgotamento do petróleo no mundo, pois o estancamento do crescimento prejudica a capacidade de reembolso.

Marx, no Livro III de O Capital, explica a lei da renda diferencial de explorações mineiras. Verifica-se que o esgotamento de recursos facilmente extraíveis obriga a buscar aqueles com maior dificuldade de extração (mais distantes, com teores de minério menores, com mais dificuldades de extração, etc.) e a renda diferencial diminui assim. Isso é válido para toda e qualquer exploração mineira – e também para o petróleo.

Neste momento os campos grandes e antigos do mundo, de extração fácil (Gawar, Cantarell, ...), já ultrapassaram o pico e estão agora no lado direito da curva de declínio. À medida que este petróleo "velho" se esgota seria preciso substituí-lo por produção de campos novos, de menores dimensões e de extração mais difícil. Mas a produção mundial já está estagnada há vários anos – apesar dos preços altos. Só, simplesmente, para conseguir manter no futuro os níveis de produção atuais seriam precisos investimentos cada vez mais colossais com perfurações cada vez mais profundas (deep offshore, etc.), em lugares cada vez mais inóspitos (zonas polares, etc.) e com ratios EROEI cada vez piores. Trata-se, portanto, de um problema de taxa de extração e não da dimensão absoluta das reservas remanescentes. Tudo isso indicia um problema sistêmico. Deve-se notar que nos referimos aqui a realidades puramente físicas, pondo de lado miragens monetárias.

Examinando o assunto pelo lado das reservas (e não da taxa de extração), verifica-se ainda que países produtores tenderão a manter para si próprios o petróleo remanescente nos seus territórios. Assim, independentemente da capacidade técnica e financeira para aumentar a taxa de produção, a quantidade disponível para exportação necessariamente diminui. O exemplo da Indonésia, país que do ponto de vista formal continua na OPEP, é significativo.

A acumulação é inerente ao modo de produção capitalista. Pela sua natureza, este modo de produção tem de criar um excedente, pois é isso que garante a sua sobrevivência. O crescimento vertiginoso do século XX deveu-se basicamente à existência de um combustível abundante e barato: o petróleo (assim como a Revolução Industrial do século XIX deveu-se ao carvão). Ora, quando o petróleo começa a escassear surge um problema estrutural: o sistema começa a patinar, a girar em seco, pois não pode "crescer". Isto explica os fenómenos do endividamento e da financiarização. Endividamento porque grande parte do investimento efetuado até agora contava com o crescimento futuro a fim de gerar recursos para poder ser reembolsado. Financiarização porque capitalistas, desesperados na busca do lucro, passaram a tentar obter dinheiro a partir de dinheiro sem atividade produtiva real. Pode-se afirmar que a Crise desencadeada em 2008 tem aí a sua génese real.

O problema sistêmico é que 1) as dívidas contraídas no passado contando com o crescimento futuro teriam de ser pagas; e 2) a obtenção de dinheiro a partir de dinheiro, sem a passagem pela etapa intermediária da mercadoria, não pode perdurar para todo o sempre. Em relação ao primeiro ponto, a solução é de uma evidência meridiana e inelutável: dívidas que não podem ser pagas não o serão. Os credores não gostam de tal solução e, portanto, tentam resolver o seu problema de outras formas como a escravização de países (Grécia, ...) e classes sociais devedoras (um neofeudalismo em que estas seriam servas das suas dívidas). É o que está acontecendo em países de capitalismo "velho", como os Estados Unidos, a Europa e o Japão, agora a caminho da decadência.

Tudo conjugado, verificamos que estamos na iminência de abalos telúricos no sistema mundial. O mundo tal como o conhecemos irá mudar na nossa geração. Os breves cem anos de crescimento (populacional inclusive) proporcionados pelo petróleo estão a acabar e isso significa uma avaria insanável num modo de produção que exige a acumulação indefinida. Não existem remédios tecnológicos que possam resolver o problema. Teremos de mudar de paradigma, com uma dieta forçosa de energia. Na realidade, não é só de energia, pois o caso do petróleo é apenas um aspecto particular do caso mais geral do esgotamento dos recursos planetários (urânio, minérios diversos, madeira, a própria água, ...). É preciso revisitar o estudo dos "Limites de crescimento", de 1972, tão vilipendiado por economistas vulgares.


O que fazer?

O primeiro passo para a resolução de um problema é reconhecer que ele existe. Até agora o mundo permaneceu na ignorância do problema ou, pior ainda, na negação do mesmo. Reconhecer a realidade do Pico Petrolífero e trazê-la ao debate público como a questão central do nosso tempo é uma tarefa premente e urgente. O Pico Petrolífero deveria permear todo o discurso político, todos os projetos sociais e económicos que se tem em vista – com o abandono do paradigma dos recursos infinitos. No entanto, a consciência do Pico Petrolífero continua a restrita a círculos especializados e portanto o necessário debate na sociedade ainda está longe de generalizado. Isso é também da responsabilidade daqueles que – como nós – se interessam e participam da vida social e política.

Em segundo lugar, temos de promover medidas que: 1) não agravem o problema com projetos de investimentos ruinosos moldados na ideia dos recursos infinitos (novos aeroportos, auto-estradas, ...); e 2) tendam a amenizar o problema mantendo padrões de justiça equitativa entre os países (sejam ou não produtores de petróleo) e entre as diferentes classes sociais.

Os problemas relacionados com a taxa de extração são imediatos mas aqueles relativos ao inelutável esgotamento dos estoques existentes no planeta são a prazo mais longo (40 ou 50 anos, talvez). Quanto a este último, devemos ter em mente que há diferentes maneiras de caminhar na curva do declínio. Uma é a forma brutal da guerra por recursos e com uma repartição altamente injusta da dotação existente do ouro negro entre países e classes sociais. Outra, uma forma civilizada em que os problemas inevitáveis serão tão minimizados quanto possível.

A forma civilizada poderia ser um acordo internacional nos moldes do "Protocolo do esgotamento do petróleo", redigido pelo Dr. Collin J. Campbell (ver aqui) que estabelece bases para um programa de transição (o parlamento português aprovou-o formalmente, mas ele é ignorado pelo governo). O protocolo pretende:
Impedir o aproveitamento especulativo da escassez (profiteering), de modo a que os preços do barril possam permanecer num relacionamento razoável com o custo de produção;
Permitir aos países pobres arcarem com as suas importações;
Evitar desestabilizar fluxos financeiros decorrentes de preços do petróleo excessivos;
Encorajar os consumidores a evitar o desperdício;
Estimular o desenvolvimento de energias alternativas.
Temos de nos preparar para um mundo cada vez menos energívoro. Hoje, os países que têm governos mais lúcidos já tomam medidas para facilitar a transição. A Suécia, por exemplo, tem um programa ambicioso para eliminar o petróleo da sua economia, com produção de biometano em grande escala. Os parlamentos da Austrália e da Grã-Bretanha fizeram comissões e estudos acerca do Pico Petrolífero e formas de minimizá-lo. Os governos do Irã e do Paquistão estimulam ativamente a substituição dos refinados de petróleo nos transportes por veículos a gás natural (já existem 2,8 milhões em cada um destes países) e o da Índia faz o mesmo (já existem 1,1 milhão). A China e a Austrália já utilizam o gás natural liquefeito (GNL) na camionagem pesada. Os exemplos poderiam multiplicar-se.

Considerando que a maior parte do petróleo do mundo é consumida no setor dos transportes e é desejável reduzir o seu consumo tanto quanto possível – em benefício das gerações futuras e de utilizações imediatas mais prioritárias (fertilizantes agrícolas, agrodefensivos, plásticos, química fina, etc.) – será uma boa ideia começar por substituir os refinados de petróleo no setor dos transportes. O combustível mais promissor para isso é o metano, o principal constituinte do gás natural. Nos transportes (caminhões, ônibus, ferryboats, navios, etc.) ele pode ser utilizado sob a forma comprimida (GNC) ou liquefeita (GNL). Ao contrário do petróleo, o gás natural também pode ter origem não fóssil: é o caso do biometano, uma energia renovável produzida a partir de resíduos e que não compete com a produção alimentar.

Caros amigos:

Durante milhares de anos a nossa espécie viveu neste planeta sem recorrer ao petróleo. O seu fim anunciado pode, portanto, não ser uma tragédia se soubermos fazer a transição. A nossa reação terá de ser adaptativa, como sempre se deu ao longo de toda a história humana diante de abalos fora do seu controle. A verdadeira tragédia não está no fim do petróleo e sim no capitalismo. Este modo de produção e de distribuição é que impede a sustentabilidade do nosso planeta. Se não o ultrapassarmos, nesta fase do mundo pós Pico Petrolífero, teremos a intensificação da barbárie: guerras predatórias por recursos naturais, distribuição cada vez mais injusta da riqueza remanescente e todo o seu cortejo de sequelas. Mas há vários futuros possíveis. Cabe a nós lutar pelos mais justos.

Sala de sessões do XVI Seminário Internacional do PT do México.


[*] Comunicação apresentada no XVI Seminário Internacional "Los partidos y una nueva sociedad", 22-24/Março/2012, na Cidade do México.

Esta comunicação encontra-se no sítio Resistir.


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