domingo, 30 de novembro de 2014

Mutações
(30nov2014)

Encontrei este texto no blog A Procura, que me remeteu ao blog de seu autor, Márcio Valley. O texto ressoa bastante com a minha percepção sobre a nossa existência, razão pela qual o reproduzo aqui. Fiz uma leitura rápida, e devo retomá-las doravante, e constatei que os textos postados por Márcio, escritos de forma descomplicada, abordam aspectos importantes do viver levantando questionamentos que nos remetem a boas reflexões. Ademais, tanto o Assis (A Procura) quanto o Márcio apresentam visões políticas com as quais, no geral, concordo. Boa leitura.


Márcio Valley

Encontrei, por acaso, uma antiga colega de trabalho, a quem não via há quase dez anos. Cumprimentei-a efusivamente, mas notei sua aparente frieza. Como éramos muito próximos na época em que trabalhamos juntos, indaguei-a se não estava me reconhecendo. Sua resposta perturbou-me pela sinceridade e coerência: "Eu conheci você, dez anos atrás, hoje não o conheço mais". Isso, num primeiro momento, pode parecer carregar algo de grosseiro, mas basta pensarmos um pouco mais profundamente para percebermos que ela está coberta de razão. De fato, quem permanece a mesma pessoa após dez anos? Já dizia Heráclito, o filósofo da fluidez, do fluxo incessante de mutabilidades, que um mesmo ser humano não se banha duas vezes no mesmo rio, pois, na segunda oportunidade, já não será molhado pelas mesmas águas. A própria pessoa tampouco carregará consigo as mesmas convicções e questionamentos que a identificavam, além do que praticamente todas as células que compunham aquele corpo que se banhou já terão morrido. Então, com corpo novo e mente nova, que pode haver de comum entre o antigo ser e o atual? Sim, minha colega estava certa. Eu não era mais a mesma pessoa que ela conheceu, assim como ela não mais era quem eu achava que ela era. Isso não significa um juízo de mérito sobre a melhor pessoa, a do passado ou a do presente. Tanto se pode modificar para o bem, como para o mal. Significa apenas que, se nos reaproximássemos, seria quase como se estivéssemos conhecendo pessoas a nós jamais apresentadas antes. Deveríamos aprender novamente sobre nossas qualidades e defeitos. Porém, infelizmente, isso não se tornou necessário, dado que o reencontro limitou-se àquela ocasião. Se, ao contrário do que nos aconteceu, nossa convivência não tivesse cessado, ainda assim seríamos diferentes do que éramos dez anos antes. Contudo, por conta da convivência ininterrupta, teríamos vivenciado as paulatinas mutações e delas teríamos inteiro conhecimento. A convivência impede a estranheza, evita as surpresas. Se o tempo é, por uma de suas faces, o remédio que tudo cura, pela outra, gêmea da primeira, é o veneno que mata o mais forte dos sentimentos. Não existe, propriamente, uma diferença entre remédio e veneno, é apenas uma questão de intensidade. Se ficarmos longe tempo o bastante, esqueceremos nossa própria língua, assim como tudo o que amamos ou que odiamos. Esqueceremos até de nós mesmos, de quem fomos. Quanto mais o tempo passa, mais tenho a sensação de que aquela criança de que me recordo jamais fui eu, cada vez mais difusa a memória, mais similar a um sonho, ou mesmo a um pesadelo, do que a qualquer realidade antiga minha compatível com a de hoje. Ainda assim, eu me recordo e são essas lembranças que fazem a ligação do eu-antigo com o eu-novo e dão-me a falsa impressão de que esse eu é sempre o mesmo. São, porém, como recordações que herdei de um estranho que habitava um antigo corpo que já morreu e que nem é o meu. É quase como se, a cada noite dormida, despertasse um novo ser humano com a memória de outro que se foi, muito parecido com aquele que foi dormir, mas um pouco diferente. E o acúmulo dessas pequenas diferenças, no fim de um certo tempo, gera algo completamente distinto, mas que carrega o mesmo nome e quase o mesmo rosto. E essa diferença é tamanha, que chego a acreditar que tenho mais semelhanças ideológicas com minhas filhas do que com o menino que fui um dia. Carrego mais um sentimento de dó do que de saudade daquele menino. Suas lembranças, que herdei, são sofridas. Tento, porém, não culpá-lo, ou às suas circunstâncias, demasiadamente pelo que sou. Muitas oportunidades foram surgindo, muitas esquinas foram dobradas, e em cada uma delas a opção foi feita pelos diversos eu-atual que existiram, alguns muito tempo depois do eu-menino que se foi. Já que estamos constantemente em mutação, fica a questão: temos algum domínio sobre essas mudanças? Podemos agir ativamente para nos tornar melhor? São perguntas difíceis para as quais talvez não existam respostas adequadas. Às vezes somos engolidos em nossas pretensões. A vida é muito mais forte do que nós e muitas vezes nos empurra por caminhos pelos quais jamais pensamos ingressar. E isso nos modifica independentemente de nossas vontades. Porém, penso que sim, que podemos ao menos tentar atuar para nos melhorar como pessoas. De que forma? Sinceramente, não sei dizer. Não creio que existam fórmulas universais. Especificamente no meu caso, tento acreditar que uma maneira é deixar de lado os sentimentos negativos. A raiva, a inveja, a mágoa, o sentimento de vingança, a cobiça, a ganância, tudo isso age contra mim, tenho certeza. A vingança bem sucedida não me traz a mesma paz que obtenho do perdão sincero a quem me magoa. Também acredito que o conhecimento é capaz de aperfeiçoar o ser humano. Para outros, a caridade e o altruísmo podem ser o caminho. Alguns encontrarão no amor a alguém, na entrega, o melhor jeito de melhorar. Saber que o ser humano está sempre em mutação oferece um outro consolo: se não podemos consertar todos os estragos do passado, é possível melhorar o seu autor, evitando repeti-los no futuro. Dentre outras coisas, a mudança pode trazer sabedoria.

Nenhum comentário:

Postar um comentário