domingo, 10 de abril de 2011

As aventuras do Sapo Gonzalo contra Yoani Sánchez (10abr2011)

Por Luiz Bernardo Pericás

Estava tomando uma cerveja no Bar do Joaquim, uma pocilga no centro da cidade, quando seu Gonzalo entrou no recinto, soltando fumaça pelas ventas, como de costume. Deixem-me aqui apresentar meu amigo. Seu Gonzalo era um sapo argentino. Grandes olheiras, barba por fazer, cabelos grisalhos, fumava sem parar um cigarro sem filtro. Parecia sempre contrariado. Militante de esquerda, havia fugido de seu país durante a ditadura militar, saltando através das fronteiras de todas as nações sul-americanas com suas longas e agéis pernas de batráquio acrobata.

Não, Gonzalo não era aquele tipo de untanho que temos por aqui. Nos idos da juventude, era mais rápido e ágil que o Maluf fugindo do fisco. Com os anos, contudo, se cansou. Mas nunca deixou o inconformismo de lado. Pois Gonzalo acabou pulando tanto de um lado ao outro que foi dar em Paris, onde viveu durante décadas, tragando maços e maços inteiros de Gitanes fumarentos, lendo a obra completa de Sartre, discutindo política com rãs européias e ouvindo Charlie Garcia na vitrola, para lembrar de casa. Adorava cinema italiano, e foi falando dos filmes de Fellini e Antonioni, com uma taça de vinho na mão, que conseguiu conquistar dezenas de girinos, estudantes da Sorbonne. Até que um dia teve um estalo e resolveu, sabe-se lá por quê, vir para cá, para nossa República do Repolho, paraíso dos trópicos e do turismo sexual. Quem sabe os pôsteres da ensolarada Copacabana nas agências de viagem tenham inspirado meu colega bufonídeo.

Pois este era seu Gonzalo, que puxava a cadeira e sentava-se diante de mim. Certamente já não era o mesmo de antigamente. Artrite e artrose, reumatismo em todo o corpo. O nervo ciático dava fisgadas. Mesmo que enferrujado, continuava um espírito combativo. Parecia mais verde do que de costume. E estava irritado porque havia sido obrigado pelo botequineiro a se livrar do palheiro que trazia aceso entre os lábios. Era movido a nicotina.

“Essas novas leis contra o fumo em locais fechados!”

Resmungava, mas de nada adiantava.

Veio logo me perguntando, indignado, se eu ouvira a última notícia sobre uma tal Yoani Sánchez, suposta “blogueira” cubana. Sabia de quem ele estava falando, mas mesmo assim, pedi para que me contasse a novidade.

“Comandante…”

Era assim que ele costumava me chamar, talvez por hábito adquirido quando participava de células clandestinas na década de setenta. Mas eu nunca havia sido nem mesmo síndico de meu prédio. E não conseguia sequer comandar meu filho e a patroa, lá em casa… Mas o sapo Gonzalo, com suas pernas compridas, cruzadas, insistia no qualificativo.

“Comandante, você viu o novo prêmio que essa tal de Yoani Sánchez acabou de receber?”

Confesso que ainda não lera a notícia bombástica, noticiada no Miami Herald e jornais similares. Dei de ombros.

“Não viu? Ela ganhou o Prêmio Internacional das Mulheres de Coragem, do governo dos Estados Unidos!”

Isso era de se esperar. A tal “blogueira” já havia recebido os prêmios Ortega y Gasset de Jornalismo Digital, Bitácoras.com, The Bob’s (vai saber o que isso, talvez um sanduíche) e Marie Moors Cabot (da Universidade de Colúmbia). Foi eleita pela revista Time como uma das cem figuras mais influentes do mundo… Ela e George Bush… O mais surrealista é que também foi incluída pela revista Foreign Policy entre os dez mais importantes intelectuais do planeta em 2008. Ora, façam-me o favor! Só faltava agora o selo de qualidade da Casa Branca, e ela o conseguiu. Como não pôde estar presente na entrega do prêmio, foi galardonada in absentia, com direito até a discurso da própria Hillary Clinton.

“Ninguém me convence que essa ‘blogueira’ não está na folha de pagamentos de Washington”, comentou o camarada anfíbio, coçando a pele viscosa.

Foi nessa hora que um arapaçu, sentado à mesa ao lado, levantou-se indignado.

O pica-pau de cabeça rubra vociferou:

“Yoani é um símbolo da luta pela liberdade de expressão!”

Bicava, bicava, bicava…

Dirigente de um micropartido de ultraesquerda, o arapaçu bradava que Cuba era uma ditadura. Sua organização já havia denunciado as atrocidades cometidas na ilha caribenha. Ele tinha muitos amigos lá, homens como Zapata e Fariñas…

O sapo Gonzalo deu um pulo, imediatamente. Parecia voltar à juventude. Com o impulso sensacional, digno dos maiores cururus da Bruzundaga, foi parar na cabeça do pássaro empedernido.

“Não me venha falar de dois marginais, bandidos comuns, seu boludo!”

O arapaçu foi pego de surpresa. Gaguejava. Afinal, andava estressado nos últimos tempos, já que havia participado, recentemente, da expulsão de duas pulgas, membros históricos de seu partido. O argumento é que elas ocupavam espaço demais na diminuta e apertada sede nacional da agremiação… O arapaçu sabia que aquele havia sido mais um racha, o de número 164, desde a fundação da organização, dois anos antes. Naquele momento, havia mais letras na sigla do partido do que o número de militantes em suas fileiras.

O fato é que o pica-pau podia discutir qualquer coisa e até chegar a um entendimento com o interlocutor. Mas a defesa do que ele chamava de “liberdades” em Cuba, isso ele não abriria mão: era intransigente! Yoani, a heroína da liberdade! Ora bolas… Mesmo que suas opiniões fossem exatamente as mesmas do governo norte-americano, continuaria a dizer para quem quisesse ouvir que era “anti-imperialista”.

Foi no meio da discussão que outro personagem resolveu se meter. O Doutor Vladomiro era um sagui semi-calvo, com barbicha ruiva e óculos da moda. Professor da Universidade de São Priápico (a maior instituição de ensino superior da República do Repolho), escrevia para jornais de grande circulação e certa vez, durante uma conferência, ficara de joelhos, quase chorando de emoção, diante de seu maior ídolo, o filósofo esloveno Slavoj Žižek. Não é que aquele guigó também veio em defesa de Yoani? Dá para imaginar a cena em seguida? Vladomiro era marxista pós-moderno e também não admitia “arbitrariedades” do regime. Conhecia Cuba de orelhadas, mas insistia em sua postura de “homem de esquerda”. Falava sobre Cuba com desenvoltura, mesmo sem nunca ter se informado acerca das sutilezas do processo revolucionário naquele país.

Gonzalo tinha vontade de lançar sua língua quilométrica em volta do pescoço do primata (do mesmo jeito que fazia quando queria pegar moscas), mas pensou melhor, lembrou-se que todos têm o direito a dar opinião e resolveu ouvir as lamúrias do saciólogo (ele estudava o comportamento dos sacis, principalmente um em particular, aquele retratado na obra de Monteiro Lobato). Vladomiro falou, falou e falou, enquanto seu rabo se movia freneticamente. Mas, como a maioria dos detratores da ilha, repetiu frases feitas, retiradas dos editoriais de revistas semanais e dos telejornais diários. Tudo, é claro, com pitadas de esquerdismo, aqui e ali.

O discurso por certo incomodava. Só depois de dez minutos, porém, é que Gonzalo e eu percebemos o que ainda não havíamos notado. Tanto o pica-pau como o sagui traziam, colados aos ouvidos, aparelhos de surdez (obviamente, adaptados às suas condições específicas dentro do mundo animal). Ao que tudo indicava, haviam desligado os aparelhos tão logo iniciaram seus discursos “democráticos”. Quem sabe por isso falavam tão alto…

O botequineiro pediu para que se calassem, estavam incomodando os clientes, criando confusão. Mas a dupla não parava, e de dedo em riste, gritava frases anticastristas. Logo em seguida, os dois iriam insistir nos valores do que acreditavam ser o “verdadeiro” socialismo que preconizavam. Só não sabiam explicar onde havia essa modalidade, nem como se chegaria a ela… Engraçado é que o “socialismo” dessa gente parecia muito com a vida na Flórida, a poucos quilômetros da ilha…

Gonzalo sentou-se e deu mais um gole na cerveja. Quando o pica-pau e o saguizinho pouca telha perceberam que haviam perdido a platéia, religaram os aparelhos nos ouvidos e retornaram às suas mesas.

Foi aí que Gonzalo, que sempre defendera Cuba, decidiu falar. Mas só para mim.

Pelo menos, essa era sua intenção inicial. Ele disse:

“Vou lhe contar, pibe, um pouco sobre essa senhorita, a tal Yoani Sánchez. Ela critica todos os dias o governo de seu país, mas vive em coquetéis de embaixadas, é amiga de estrangeiros e recebe dinheiro dos gringos. É sempre vista com seu lap top nos hotéis mais caros de Habana Vieja, tomando seu expresso ou cappuccino. Diz que não tem liberdade de expressão, mas nunca teve problemas em divulgar suas mensagens insidiosas pela internet. Apóia os piores criminosos do país, aqueles que se disfarçam de ‘rebeldes’ e ‘humanistas’. Mas, como já ficou provado, são, em sua grande maioria, homens condenados por roubos, abusos contra mulheres, estupros, violência doméstica e assassinatos, e que usam o ‘escudo’ de ONGs internacionais de defesa dos direitos humanos para fazer o serviço contra a revolução e todas suas conquistas. Ganham visibilidade na Europa, conseguem angariar apoios e disseminar o ódio e a contrainformação nos meios de imprensa. Yoani é quem mais tem trabalhado para denegrir e esculhambar o sistema socialista. Mas a ‘blogueira’ não está escondida nem detida numa prisão escura. Quem quiser encontrá-la, sabe seu endereço. Anda livremente pelas ruas da capital. Não é molestada por ninguém. Diz que a polícia a persegue. Mas está solta e desimpedida. Em suas entrevistas, defende o fim do regime e a entrada total dos Estados Unidos em todas as esferas da vida do país. Afinal, essa ‘intelectual’ (pobres intelectuais) diz que os Estados Unidos e Cuba têm muito em comum: ambos povos adoram beisebol! Para ela, os cubanos da Flórida não são inimigos; pelo contrário, ‘Y’ os convidaria de braços abertos a entrar no país. Essa ‘blogueira’ que tanto diz querer sair de Cuba, viveu na Suíça, onde poderia estar até hoje. Mas não aguentou. Ou não quis. Preferiu voltar ao Caribe. Por que não ficou por lá? Por que continua a dizer que é perseguida? A tal Yoani acha que o aso do terrorista Posada Carrilles (responsável pelo atentado que matou dezenas e dezenas de pessoas num avião cubano) não é importante e não interessa ao povo comum das ruas. Já os cinco patriotas, encarcerados em prisões norte-americanas, esses provavelmente eram espiões infiltrados pelo serviço secreto da ilha. Tão intelectualizada é essa ‘jovem’ que não sabia sequer que Washington já havia patrocinado uma invasão a Cuba, na Baía dos Porcos. Mudanças no governo de Cuba? Por que não? A Casa Branca quer que isso ocorra, e ela também; foi o que respondeu certa vez, em sintonia com a Administração do ‘Colosso do Norte’. Para Yoani, o regime Batista era uma ditadura, mas, teoricamente, era melhor do que o governo de Castro. Afinal de contas, naquela época, havia liberdade de imprensa! Para completar, ‘Y’ acha que não há problema de os Estados Unidos financiarem grupos de oposição em nenhum lugar do mundo. Isso não representaria qualquer ingerência externa nos assuntos nacionais. Pois se você quiser saber, mi querido, ouça o que esse velho sapo argentino tem a lhe dizer. Procure ler uma entrevista esclarecedora que Yoani concedeu ao pesquisador francês Salim Lamrani e que foi publicada no jornal Rebelión. A entrevista é tão impressionante e esclarecedora que vale a pena ser lida. Fiquemos sempre do lado da revolução!”

Quando terminava de falar, Gonzalo já elevara o tom e agora brandia em voz alta. Suas mãos tremiam. Coaxava para que todos ouvissem. Deu mais um gole na cerveja, já morna, e completou com “Viva Cuba! E viva Fidel!”

Subitamente, escutamos um forte aplauso. O botequineiro; um garoto, engraxate, que entrava no local; e um porteiro do prédio vizinho, tomando um café forte, ao balcão, batiam palmas, entusiasmados. Eles haviam prestado atenção a tudo, e concordado com o batráquio. Com um sorriso nos lábios, o sapo pegou seu copo e levantou um brinde aos novos amigos.


Todos os animais mencionados nesta história são personagens de ficção (com exceção de Yoani). O autor recebeu autorização do IBAMA e da V Internacional de Hugo Chávez para utilizar os animais no presente texto.

Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica, Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia, (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

Do Blog da Boitempo, postagem de 8 de abril de 2011.

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