Por Eduardo Guimarães
Não há nada pior para uma democracia do que o cinismo. Aquele cinismo coletivo com o qual as pessoas fingem que não sabem de alguma coisa apesar de todos estarem carecas de saber. Bom exemplo desse comportamento reside na teoria da “democracia racial” brasileira, segundo a qual os brancos ricos do Sul-Sudeste do país proclamam: “Não somos racistas”. Um comportamento que, aliás, é responsável pela perpetuação da inferioridade étnica no Brasil.
Até há menos de uma década, tal idéia era praticamente incontestável. Apesar de todos saberem que as prisões estão abarrotadas de negros e mestiços em maioria totalmente incompatível com a proporcionalidade estatístico-étnica deste povo, apesar de o perfil majoritário do brasileiro que sofre morte violenta ser o do jovem pobre descendente de negros, apesar de todos saberem que afro-descendentes ganham menos e são reiteradamente preteridos no mercado de trabalho, apesar de a propaganda e até a teledramaturgia brasileiras lembrarem, do ponto de vista de modelos e atores, as de países nórdicos, ao menos na mídia a teoria do racismo cordial brasileiro sempre predominou.
Quer ver hipocrisia? Quantos entre aqueles que professam os mesmos dogmas ideológicos que o extremista de direita que acaba de praticar genocídio na Noruega e que acalenta repulsa à miscigenação ou a direitos para homossexuais não estão se fazendo de “perplexos”? E quantos sabem que as idéias daquela besta-fera são repetidas à exaustão neste país pelos “homens de bem” brancos e ricos do Sul-Sudeste, sobretudo?
Você não verá essa constatação óbvia e necessária ganhar força. Não se discutirá que idéias degeneradas como a do genocida norueguês são ditas abertamente por determinadas classes sociais abastadas e de regiões específicas, discurso que estimula verdadeira perseguição, no Sul e no Sudeste, a descendentes de negros, a nordestinos e a homossexuais.
O cinismo cultural brasileiro não oferece quartel, não se abala, não ruboriza. Pelo contrário: exibe-se todo garboso, sorridente e perfumado. Afeta uma fleuma britânica, olhando, horrorizado, para quem ousa apontar fatos escandalosamente evidentes.
Em política, por exemplo. Jornais que todos os dias vêm recheados de denúncias, críticas, ironias e insultos sempre contra o mesmo grupo político específico, o da aliança que governa o país, e que, depois que o PT chegou ao poder, nunca mais acusaram a oposição de adepta do “quanto pior, melhor”, dizem-se “isentos”. Mesmo adotando postura cem por cento chapa-branca em relação a governos estaduais de partidos adversários daqueles que governam o país.
Enquanto órgão do governo federal como o DNIT se vê sob bombardeio midiático de denúncias de corrupção, em São Paulo a Dersa tem o mesmo tipo de problema de denúncias de superfaturamento de obras bilionárias que chegam a quase dobrar de valor em relação ao orçamento inicial. A mídia que cobra o DNIT, claro, não noticia quase nada. E quando noticia, é rápido. A notícia some logo em seguida. E, detalhe: nunca vem editorializada, ou seja, são sempre matérias frias, sem opinião. Como devem ser, aliás. Contanto que sejam para todos.
Esses profissionais do jornalismo e da comunicação que conduzem esse desastre ético-jornalístico, aliás, abusam do cinismo ao se dizerem todos muito “isentos”. Ontem mesmo li um editorial de O Globo dizendo que “a imprensa” não seria partidária, seria “técnica e profissional”, apesar de a omissão desse e de outros veículos congêneres em relação a denúncias contra o PSDB ser facilmente verificável, bastando rápido exame de período mais largo das edições desses veículos, para tanto.
Nem todo aquele que se diz isento é canalha, mas todo canalha se diz “isento”. Esse é um truísmo incontestável. Porque aquele que deseja seduzir a outros com seus dogmas e preferências político-ideológicos através do engano, do logro, não pode prescindir de se apresentar como alguém desinteressado pessoalmente no jogo político e, portanto, “confiável”.
Sendo honesto, não se pode ignorar que o comportamento cínico da mídia ou da classe política espelha o comportamento da sociedade. Todos convivem com situações em que negros são prejudicados profissionalmente, todos sabem que ganham menos, que praticamente não existem em determinados clubes, escolas, bairros, profissões e cargos ou que as novelas brasileiras chegam a ter 70, 80 por cento de atores brancos de aparência européia. E todos convivem pacificamente com isso em um país majoritariamente miscigenado. Inclusive os prejudicados.
O próprio descendente de negros, ciente da inferioridade social de sua etnia, declara-se “branco” aos censos do IBGE, por exemplo. É forma de não ser descartado numa entrevista de emprego ou na admissão em um clube sem ao menos ter a chance de passar da pré-seleção.
Algumas pessoas que se declaram “brancas” têm características físicas altamente eloqüentes de sua predominância étnica discrepante, mas têm que apelar ao cinismo cultural brasileiro em busca de fugir da discriminação. A negação da própria natureza é dolorosa, a situação que leva a alguém a negar o que é, dói na alma. Mas o fato é que essa conduta defensiva não deixa de ser cínica, ainda que adotada sob motivação mais do que compreensível.
O cinismo cultural não é característica de uma só ideologia, de um só estrato social, de uma só etnia ou de uma só região. Pode até ser mais forte – ou mais escandaloso – em alguns estratos sociais e regiões, mas é impossível negar que é traço da identidade nacional. Fingir que não vê o que é facilmente visível é comportamento amplamente aceito. Inclusive por razões compreensíveis como a de nos permitir nadar no oceano de hipocrisia que banha este país.
Publicado em 26 de julho de 2011 no Blog Cidadania.
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