A Doutrina do Choque na prática
Naomi Klein
The Nation/Alternet
Ouço todo o tempo
comparações entre os distúrbios de Londres aos que se sucedem em outras cidades
europeias, destruição de vitrines em Atenas ou incêndios em automóveis em
Paris. E há paralelos, sem dúvida: uma faísca provocada pela violência
policial, uma geração que se sente esquecida.
Mas esses eventos
estiveram marcados por destruição massiva; os saqueios foram menores. Tem
havido, entretanto, outros saqueios massivos nos últimos anos, e talvez
devêssemos falar também deles. Foi em Bagdá, depois da invasão estadunidense,
um frenesi de incêndios e de saqueios que esvaziaram bibliotecas e museus. As
fábricas também foram afetadas. Em 2004 visitei uma que fabricava
refrigeradores. Seus trabalhadores a despojaram de tudo o que tinha algum valor
e em seguida a incendiaram com tal intensidade que o armazém era uma escultura
de pranchas de metal retorcidas.
Nesses dias o pessoal nas
notícias por cabo pensou que os saqueios foram altamente políticos. Disse que é
o que se passa quando um regime carece de legitimidade aos olhos do povo.
Depois de ver durante tanto tempo o modo como Sadam e seus filhos se serviam de
tudo e de todos a seu gosto, muitos iraquianos pensaram que haviam ganhado o
direito a apoderar-se de umas poucas coisas para si mesmos. Mas Londres não é
Bagdá, e o primeiro-ministro britânico David Cameron está longe de ser Sadam,
de modo que é certo que não se pode aprender nada desse assunto.
E se considerarmos um
exemplo democrático? Argentina, quase em 2011. A economia estava em queda livre
e milhares de pessoas que viviam em bairros difíceis (antigas zonas industriais
prósperas antes da era neoliberal) invadiram supermercados de propriedade
estrangeira. Saíram empurrando carrinhos de compras abarrotados de bens aos
quais já não podiam ter acesso, roupa, eletrônicos, carne. O governo proclamou
um "estado de sítio" para restaurar a ordem; o povo não gostou e
derrubou o governo.
O saqueio da Argentina foi politicamente significativo porque era a mesma palavra utilizada para descrever o que as elites daquele país tinham feito ao vender os ativos nacionais do país, em acordos de privatização, de uma corrupção flagrante, ocultando seu dinheiro no exterior, passando logo a conta ao povo mediante um brutal pacote de austeridade. Os argentinos compreenderam que o saqueio dos centros comerciais não teria acontecido sem o maior saqueio do país, e que os verdadeiros gângsteres eram os que estavam no poder.
Mas Inglaterra não é
América Latina, e seus distúrbios não são políticos, ou pelo menos é o que nos
é dito. Tem a ver somente com rapazes ingovernáveis que aproveitam uma situação
para se apoderarem do que não é deles. E a sociedade britânica, nos diz
Cameron, detesta esse tipo de conduta.
E ele diz com seriedade.
Como se os resgates massivos dos bancos nunca tivessem ocorrido, seguidos das
descaradas bonificações recordes. Seguidos das reuniões de emergência do G-8 e
do G-20, quando os dirigentes decidiram, coletivamente, não fazer nada para
castigar os banqueiros por causa disso, não fazer nada sério para impedir que
uma crise similar volte a ocorrer. Em vez disso, todos voltariam a seus
respectivos países e imporiam sacrifícios aos mais vulneráveis. Fariam isso despedindo trabalhadores do setor
público, convertendo os professores em bodes expiatórios, fechando bibliotecas,
aumentando o custo da educação, rejeitando os contratos com os sindicatos,
criando privatizações aceleradas de ativos públicos e diminuindo as pensões:
misture o coquetel conforme o seu país. E quem se apresenta na televisão dando
sermão sobre a necessidade de renunciar a esses "benefícios"? Os
banqueiros e os administradores dos fundos de alto risco, é claro.
Estamos diante de um
saqueio global, dias de grande retirada de benefícios. Alimentado por um
sentido patológico dos direitos e benefícios, esse saqueio realizou-se a plena
luz do dia, como se não houvesse nada a ocultar. Entretanto, existem alguns
medos irritantes. No começo de julho, o Wall Street Journal, citando uma nova
sondagem, informou que 94% dos milionários temem a "violência das
ruas". De fato, esse é um temor razoável.
Evidentemente, os
distúrbios de Londres não foram um protesto político. Mas o pessoal que comete
roubos noturnos está endemoninhadamente certo de que suas elites estão comtendo
roubos em plena luz do dia. Os saqueios são contagiosos.
Os conservadores têm
razão quando dizem que os distúrbios não têm a ver com os cortes. Mas têm muito
que ver com o que representam esses cortes: que as pessoas sejam cortadas como
se fossem uma sobra. Ser excluído em uma classe baixa em rápido crescimento, e
que as poucas saídas que existiam - um emprego sindicalizado, uma boa educação
acessível - se fecham rapidamente. Os cortes são uma mensagem. Dizem a setores
completos da sociedade: vocês vão ficar onde estão, como os migrantes e
refugiados que rejeitamos em nossas fronteiras cada vez mais fortificadas.
A resposta de David
Cameron aos distúrbios é fazer com que essa exclusão seja literal;
desalojamentos de residências sociais, ameaças de cortar os meios de
comunicação e condenações indignantes (cinco meses a uma mulher por receber um
short roubado). Tornam a enviar a mesma mensagem: desapareçam e façam-no em
silêncio.
Na "cúpula da
austeridade" do G-20 do ano passado em Toronto, os protestos
converteram-se em distúrbios e numerosos carros policiais foram queimados. Não
foi nada em comparação com os eventos de Londres 2011, mas foi chocante para
nós, os canadenses. A grande controvérsia então foi que o governo havia gasto
675 milhões de dólares na "segurança" da cúpula (mas apesar de tudo
parece que não puderam apagar esses incêndios). Então, muitos de nós destacamos
que o custoso novo arsenal adquirido pela polícia - canhões lança-água, canhões
de som, gás lacrimogêneo e balas de borracha - não tinham sido adquiridos
somente para reprimir os manifestantes nas ruas. Seu uso em longo prazo era:
disciplinar os pobres, os que na nova era de austeridade têm tão pouco a perder
que se tornam perigosos.
É o que David Cameron não
compreende: não se pode cortar os pressupostos da polícia ao mesmo tempo em que
se corta todos os demais. Porque quando se rouba do povo o pouco que tem, a fim de proteger os interesses dos que
têm mais do que qualquer pessoa merece, há que contar com que haja resistência,
sejam manifestações organizadas ou saqueios espontâneos.
E não é política. É
física.
Naomi Klein é uma jornalista premiada, colunista publicada em numerosos periódicos e autora do êxito de vendas internacional do New York Times, A Doutrina do Choque: o auge do capitalismo do desastre (setembro de 2007); e de um sucesso de vendas internacional anterior: No logo: o poder das marcas; e da coleção: Cercas e janelas: despachos desde as trincheiras do debate sobre a globalização (2002). Leia mais em Naomiklein.org. Ela pode ser seguida no Twitter: @naomiklein
Fonte (em inglês): AlterNet
Texto em espanhol, traduzido por Germán Leyens, pode ser acessado em Rebelión.
Traduzido do espanhol por Aquiles Lazzarotto.
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