O homem (Antonio Carlos Jobim)
Antonio Carlos Jobim
Segurança, ou a falta de, é tema constante da mídia nacional. Cobra-se o tempo todo das autoridades providências. Em geral, as pessoas querem mais policiamento ostensivo. Querem também, como mostrado aqui, que a polícia seja truculenta com os "marginais". Dignidade humana e direito de julgamento com defesa são postos de lado. A notícia "boa" é aquela que mostra ritos sumários. Policiais se tornam juízes e carrascos em poucos minutos. Sorrateiramente, a mídia "especializada" aplaude.
Há uma aplicação intensiva, alopática, de pavor nas pessoas. As ruas ficam mais e mais desertas à noite. As novelas prendem todo mundo em casa. Ninguém sai no portão, as crianças não brincam mais em frente de casa. Ah, tem exceções! Em, condomínios fechados as crianças ainda brincam nas ruas. Mas famílias em frente ao portão, conversas com vizinhos, isso, mesmo em condomínios fechados, raramente acontece. A televisão atrai para dentro de casa. E a televisão aplica mais doses de violência na cabeça.
Se segurança é um tema tão caro ao brasileiro, acredita-se que haja um banco de informações nacional, com os Estados compartilhando dados. Quantos foragidos, quais foragidos, quantos presos, quais presos, quantos mandados de prisão, para quem, por qual razão. Não! Não há. Por conta da autonomia federativa, as políticas e organizações públicas de segurança são integralmente definidas em cada Estado.
O Conselho Nacional de Justiça, CNJ, determinou que todos os órgãos judiciários estaduais alimentem um banco único de dados com todos os mandados de prisão que forem expedidos, bem como as circunstâncias e as causas de tais mandatos. Para começar a ser feito dentro de seis meses...
O brasileiro pode, hoje, ter 27 carteiras de identidade, uma em cada Estado. Num processo que levou dez anos para se concluir, o governo federal criou o Registro de Identidade Civil. O RIC será centralizado no Instituto Nacional de Identificação. Há diversos vídeos sobre o RIC, e escolhi um para mostrar:
O Brasil desenvolveu a cultura do flagrante. Com isso, prende-se principalmente a arraia miúda da criminalidade. E isso toma todo o tempo dos agentes policiais e da justiça. Os tubarões, os grandes criminosos que assacam os cofres públicos, os chefões do crime em nível nacional e internacional, esses ficam tranquilos. O aparato de segurança pública não tem tempo nem propensão para a investigação científica. Dados unificados nacionalmente começariam a municiar mais adequadamente a polícia. Uma polícia com inteligência chega mais perto dos "peixões".
A mídia parece um vampiro. Alimenta-se de sangue. Espirra sangue nos leitores, ouvintes e telespectadores. Acusam todo o tempo a ineficácia da segurança pública. As empresas de segurança agradecem, sensibilizadas. As despesas da população com aparatos e pessoal para segurança crescem vertiginosamente. É uma indústria que cresce a todo vapor. E devem ser, por vias indiretas ou diretas, ótimos anunciantes.
Medo gera medo, medo se transmite, se inculca nas pessoas
Quem assistiu Tiros em Columbine, documentário de Michael Moore, lembra-se da diferença que ele registrou entre as emissões de TV nos Estados Unidos e no Canadá. Foi, segundo ele relata, descoberta casual. Num final de tarde parou para lanchar e descansar num bar. O bar ou restaurante, é daqueles que estamos habituados a ver em filmes americanos. Com aquelas TVs que ficam por todo lado.
Algo incomodou o Sr. Moore. Ele levou um tempo para se dar conta de que o noticiário tratava de temas como saúde, educação, com entrevistas tranquilas. Não havia o tom catastrófico e de violência da totalidade da programação norte americana de TVs. As pessoas estavam serenas no bar. Aí ele entendeu por que as pessoas não trancavam as portas de suas casas. Não lhes havia sido inculcado o medo.
O medo é um excelente instrumento para muita gente "boa". Para a indústria da segurança, lucro. Para os conservadores de direita, a possibilidade de impingir leis mais duras e de elas serem bem recebidas pela população. Para a polícia, abre portas para o extravasamento do autoritarismo e dos instintos violentos que ali se alojam.
Um modelo perfeito quando se quer aplicar políticas neoliberais. Uma população encolhida, medrosa, assustada, recebe de bom alvitre o arbítrio, se esse vier acompanhado de promessas de reduzir a insegurança. Naturaliza-se a responsabilidade individual pela segurança. O que seria um direito do cidadão passa a ficar por sua conta. Privatização da segurança. Segurança materializada como mercadoria. Mais uma forma de fazer migrar dinheiro de trabalhadores para os acumuladores do capital. Tal como na saúde, no saneamento básico, na educação, no... E segue uma lista grande de despesas que nossos pais ou avós sequer sonhavam que um dia deveríamos ter.
Na perspectiva neoliberal, o Estado tem que ser retirado de todo e qualquer setor de atuação que possa dar lucro à iniciativa privada. O deus neoliberal é o deus mercado. Ele é quem dá as diretrizes (aumento de juros, redução de salários, reformas na previdência, reformas nas leis trabalhistas etc.) para o "equilíbrio" financeiro.
Há grandes "pontas-de-lança" a apoiarem a continuidade da política neoliberal. A mídia cumpre seu papel de alienar, desinformar e assustar, todos os dias, o dia todo. Os órgãos de segurança caóticos, desconectados entre si, com servidores mal remunerados (chamariz para a corrupção) e imbuídos de autoridade e ressentimentos (herança do regime militar). O povo, que, com a lavagem cerebral de que é vítima, que fica inerte, não se mobiliza, não se organiza minimamente para fazer coisas que a mídia costuma qualificar como "baderna" e "vandalismo". O governo, cercado de pressões poderosas sejam da mídia, sejam dos agronegociadores, sejam dos industriais, sejam dos rentistas da dívida pública, mas sem a pressão do povo, vai sendo empurrado a obedecer o mercado.
Cerca de 50% das vagas do Congresso Nacional são ocupadas por empresários. Qual é o percentual de empresários em nossa população? A quem esse Congresso representa? Daí, dificilmente teremos uma regulamentação da mídia, deixando-a livre para cometer todo tipo de sandices e para torcer descaradamente para que o país vá à bancarrota, abrindo espaço para o retorno dos mais conservadores políticos ao poder central. Daí, uma implementação de políticas unificadas de segurança sofre delongas. Muitos anos de gaveta, outros muitos anos de debates e negociações, e ainda mais muitos outros anos para implantação.
Bom para os grandes bandidos. Muitos deles devem até frequentar os mais altos círculos da sociedade, bem como os gabinetes de muitos parlamentares, governadores, prefeitos e até o Palácio do Planalto. São selvagens com verniz de civilização, bem educados, bem vestidos, ricos, poderosos. Mas selvagens até a última fibra de seus cabelos. Selvagens para quem a vida humana vale pouco ou quase nada. Selvagens para quem a propriedade tem que ser mais protegida do que a dignidade do homem. Selvagens que não hesitam em obter lucros, sejam quais forem os meios, sejam quais forem as consequências.
O povo? Ora, o povo. Ele está aí para trabalhar até não poder mais. De preferência sem garantias previdenciárias e sem assistência do poder público. O governo precisa diminuir seus "gastos". Mas leia aqui quanto o governo gasta com os rentistas em relação ao gasto com o Programa do Bolsa Família.
A USP montou um quadro completo com 20 anos de notícias sobre violência policial (links para download aqui e aqui), execuções (aqui e aqui) e linchamentos (aqui e aqui) nos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, com dados de 1980 até os dias atuais. Segundo Cecília Olliveira, do blog Arma Branca, é "um universo de 21.231 casos registrados, extraídos de 28.125 notícias publicadas. O banco de dados da imprensa não trabalha com amostragem, reunindo todos os casos publicados nas principais fontes de coleta". É a naturalização do assassinato como "justiça", de algo que deveria ser intolerável numa sociedade que se pensa civilizada.
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