Sinal fechado (Paulinho da Viola)
Chico Buarque e Maria Bethânia
A coluna da ombudsman da Folha noticia a reação dos leitores ao episódio do “estrebucha”. Para quem não leu, reproduzo:
“ ...Cotidiano trouxe um vídeo que mostra dois presos baleados no chão, enquanto policiais lamentam que eles não tenham morrido. "Estrebucha!", diz um deles. A reportagem, na Folha.com, provocou uma avalanche de comentários (1.780). O conjunto da obra revoltou os leitores que identificam na imprensa uma tendência a proteger os "direitos dos bandidos". ‘Se fosse um policial agonizando, vítima de um assassino covarde, será que a mídia se daria ao trabalho de questionar?”, perguntou um dos internautas mais educados. "Parabéns ao empenho da Folha. A criminalidade agradece", escreveu outro."Um dos modos de aferir o nível moral de uma sociedade é verificar como ela hierarquiza valores. A amostragem da “folha.com” não é evidentemente científica no plano estatístico, mas diz algo. Parte considerável de nossos cidadãos demonstra que em sua visão moral violar a propriedade deve ser punido com a perda da vida, e que não há nenhum grande problema tratar de modo atroz, brutal, selvagem quem agoniza já indefeso, se afrontou o sacrossanto direito de propriedade. A propriedade, pois, precede a vida. Os leitores indignados não estavam satisfeitos com o fato de os criminosos feridos serem presos, processados e punidos de acordo com regras jurídicas legítimas. Queriam mais. Queriam torpezas.
Há uma lastimável demanda social por mais violência contra a violência. Isto repercute na indiferença diante da degradação humana nos presidios, na exigência de penas draconianas, no tratamento de pessoas como subhumanos, no uso de tornozeleiras como se se tratasse de animais.
Não simpatizo com argumentos utilitaristas. Dizer, por exemplo, que a violência gera mais violência pela reação de quem é maltratado pelo Estado, e que portanto restaremos mais inseguros ainda, é um tipo de argumento utilitarista. Não deixa de ser correto. É verdadeiro, mas há um incômodo. Subjacente a este raciocínio temos algo assim: se tratar criminosos de modo violento resolvesse, a violência poderia então ser legitimada.
Filosoficamente, há um argumento melhor.
Prefiro dizer que uma sociedade civilizada deve ser erigida sobre a base do princípio do respeito à vida e à dignidade do humano. Na Filosofia Moral isto se chama imperativo. Chama-se assim para expressar a idéia de que é incondicionado. Ele conforma melhor o argumento utilitarista, retira-lhe aquele incômodo subjacente. Despidos das emoções e com suas estruturas racionais em uso, aqueles leitores indignados certamente assumiriam a premissa de que suas vidas valem mais do que propriedades e que em hipótese alguma qualquer forma de violência pode ser legitimada. Racionalmente, é o tipo de sociedade em que escolheriam viver. Eles ainda não sabem disso.
O juiz (e blogueiro/colunista) Marcelo Semer publicou, há alguns anos, Crime Impossível, com base em sua dissertação de mestrado. Deu-me o privilégio de escrever o prefácio. A ordem de idéias que expus acima está refletida naquele prefácio, e o texto de Semer também está impregnado desse espírito iluminista de humanização do Direito Penal. Reproduzo abaixo o prefácio e, claro, recomendo vivamente a leitura do texto elegante, preciso e filosoficamente correto de Semer.
Dissertando sobre o crime impossível, Marcelo Semer nos chama a atenção para um tema caro à democracia: os perigos da hipertrofia do Direito Penal.
Observamos entre nós o fenômeno. Vem sendo impulsionado pelo arrivismo político que dá guarida ao clamor descontrolado de certa opinião pública, notoriamente favorecido por incidentes criminais em que figuras de fortuna ou prestígio social foram atingidas. É uma reação que, no cerne, quer ferir de morte o que Semer designa apropriadamente como o conceito iluminista do Direito Penal. Assim, o legislador acaba desempenhando o papel oposto ao que esperamos dele segundo os preceitos do moderno Direito Penal. A pena, que deveria expressar a racionalidade de não permitir o ressentimento e a vingança privada, torna-se ela própria uma manifestação do ressentimento. O que é particularmente incômodo, porque esta sanha repressiva nunca vingou ao longo dos anos de crescimento da criminalidade atingindo o cidadão comum.
Nestes tempos sombrios, ocorre lembrar o que Hegel certa vez escreveu sobre o Direito Penal: "se ... a pena é representada como coação, somente se lhe pode imputar o caráter de determinação, de algo totalmente finito que não entranha racionalidade alguma e que por inteiro fica compreendida sob a noção geral de determinada coisa oposta a outra, ou de uma mercadoria com a qual se compra outra coisa, ou seja, o crime. O Estado como poder judicial mantém um mercado provido de determinações chamadas crimes, que oferece a quem por elas pague o preço de outras determinações, e o Código Penal é a lista de preços." 1
A ironia do filósofo evidencia algo que nunca convém esquecer: o destinatário da sanção penal é senhor de seu arbítrio.
É senhor de seu arbítrio tanto para utilizar-se da liberdade que integra a estrutura lógica das normas - todos conhecemos na experiência algo semelhante ao mecanismo descrito por Hegel- como para subtrair-se a elas ao modo que se pode ilustrar com o exemplo do caçador.
A caça, tal como a sanção penal, é o obstáculo perigoso a ser superado. O caçador espreita, estabelece seu raio de ação, calcula os riscos e executa sua estratégia quando se sente seguro o suficiente para supor que consegue ileso seu objetivo. Da mesma forma que para o caçador convicto, seguro de sua competência, não é fundamental o porte e o perigo do animal, para o agente da conduta criminosa não é questão decisiva o adjetivo que o legislador apôs ao crime e a extensão da pena.
Há na idéia de um Direito Penal exacerbado a vã esperança de elidir o arbítrio dos indivíduos, como se esse arbítrio não integrasse a própria estrutura das normas. Supõe-se que é possível dar uma eficácia tal aos mecanismos repressivos do Estado que a norma fica praticamente elevada à condição de fato, como se fosse possível imitar na sociedade a relação de causalidade própria da natureza. A mentalidade repressiva e a intolerância política, típicas dos regimes totalitários, estão ligadas de algum modo a este trágico equívoco lógico. A intensificação dos mecanismos repressivos do Estado, não conseguindo - pela própria natureza das coisas - elidir o arbítrio dos indivíduos, sugere mais repressão, num círculo vicioso em que todos morremos do remédio. É assim que surgem as barbáries: imagina-se que é possível vencer a lógica das normas exposta por Hegel com penas que comprometem a civilização e a dignidade humana, ou vencer o arbítrio dos indivíduos com a instalação de um Estado que perde sua natureza ao deixar de lado os seus atributos para tornar-se apenas um gigantesco e tentacular mecanismo de repressão.
Lembremos que na República, de Platão, os guardiões submetem-se ao necessário governo do rei-filósofo. Os guardiões são responsáveis pela defesa da sociedade. Como a luta é ofício e razão de ser de suas vidas, tendem a considerar a força uma lógica autônoma. Ela se auto-alimenta e tende à expansão, salvo se os reis-filósofos dão-lhe forma moral e racionalidade.
O ensinamento de Platão expressa a sabedoria de jamais permitir que o aparato repressivo do Estado conduza-se a si próprio ou - o que é o mesmo - que a mentalidade repressiva contamine a sociedade, e, à guisa de governo, as diretrizes políticas reduzam-se à lógica da força, que na verdade está se determinando a si mesma. Reside em potência nesta lógica a violência, o poder descontrolado que destrói os fundamentos éticos e a racionalidade da vida social.
A força é o ente empírico do Direito que não resolve seu sentido, ainda que ele não possa se apresentar na experiência de outro modo. Como se vê pela cortante observação de Hegel, empiricamente a norma dirige-se ao arbítrio dos cidadãos, mas neste plano se perpetua em um não-sentido sem atingir seu fim de regular condutas. Somente se torna inteligível como uma mensagem que, recepcionada pelo arbítrio, dirige-se, na verdade, à razão dos homens, que manda organizar a sociedade segundo os princípios da solidariedade e da fraternidade. É fácil compreender porque uma sociedade desigual, arbitrária e violenta acostuma-se a chamar os guardiões e delegar a eles o problema do controle social. É assim que o Direito vai perdendo sua inteligência - tomo também a expressão no sentido comum, o de evitar fazer coisas insensatas - para cada vez mais aparecer identificado com os guardiões, com a repressão que, afinal, acaba sendo a precária sustentação da sociedade iníqua, num círculo perverso em que a violência causa mais violência e ódios acumulam-se para onde quer que se olhe.
O conceito de Direito Penal mínimo é como o de um rei-filósofo que impõe limites aos guardiões. Ao longo do texto de Marcelo Semer nota-se a sabedoria de razão prática consistente em não admitir que sejamos governados pela lógica da repressão. Tratando do crime impossível, assenta sua defesa da teoria objetiva, que quer a punição apenas naqueles casos em que a conduta signifique no mínimo perigo concreto para o bem jurídico tutelado, em um postulado decisivo para a democracia: ao Direito Penal não compete punir a subjetividade dos indivíduos, não compete punir o cidadão pelo que é, não compete cuidar de ânimos.
O valor das proposições jurídicas reside na adequação do conhecimento à sabedoria. A sabedoria de um Direito Penal mínimo integra a razão prática, mas Marcelo Semer cuida de construir a técnica porque no Direito a sabedoria não pode intervir ao modo de um deus ex-machina.
Assim, o operador do Direito Penal encontrará no texto os conceitos técnico-jurídicos exigidos para que o Direito Penal mínimo se mostre operacional no tema árido do crime impossível, com a rigorosa harmonia lógica que lhe confere a necessária condição de aplicabilidade.
Mas, sobretudo, é um texto iluminado sobre a liberdade neste tempo sombrio. Não sei o que pode ser mais digno para um texto jurídico do que mostrar que a liberdade pode habitar nossa mente racional, além de povoar os sonhos do coração.
Marcio Sotelo Felippe
Setembro de 2002
Postagem de 31 de agosto de 2011 no blog Allonsanfan.
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