“Queremos ética e transparência no uso dos recursos, mas isso contraria muita gente”
Por Conceição Lemes
Desde anteontem, estudantes e professores da Universidade Federal de Rondônia (Unir) comemoram esta grande vitória. A renúncia do professor José Januário de Oliveira Amaral ao cargo de reitor, apresentada na quarta-feira, 23 de novembro, ao ministro da Educação, Fernando Haddad. A exoneração deve ser publicada no Diário Oficial da União nos próximos dias.
Pesa sobre a Fundação Rio Madeira (Riomar), que serve de apoio à Unir, uma série de irregularidades. Há desde problemas em concursos, convênios e diárias à contratação de empresas fantasma, utilização de “laranjas”, compra de terrenos e produtos superfaturados.
Resultado: malversação e desvio de recursos públicos por uma “organização criminosa”, que envolve pessoas ligadas ao reitor, “também suspeito de envolvimento no esquema”, segundo o Ministério Público Estadual Rondônia.
Isso tudo só veio à tona graças à greve histórica de estudantes (inicialmente) e professores (aderiram depois), que hoje completa 72 dias, e à ocupação da reitoria pelos alunos, há 51. Além de tornarem públic esses desmandos, eles sofreram pressões e ameaças.
O pedido de socorro que o professor Alexandre Pacheco, do Departamento de História, enviou ao Viomundo, e foi publicado em 23 de outubro, é revelador:
Estamos em greve a 38 dias contra a corrupção que se instalou na Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e sua fundação de apoio.
Forças políticas locais fazem cerco e impedem a divulgação nacional de nossa greve.
Pedimos o afastamento imediato do Reitor e denunciamos o estado de ruínas em que se encontra nossa universidade nas mãos da atual administração.
A foto abaixo se constitui como resumo do nosso drama!
Essa foto foi tirada dois dias antes, 21 de outubro. Mostra agentes da Polícia Federal (apresentaram-se como tal, sem mostrar identificação, assim como não exibia a logomarca da PF o carro deles ) em ação dentro da universidade. Há suspeitas de que eles poderiam ter simulado uma explosão no campus para culpar os manifestantes e desocupar a reitoria.
O fato é que, fazendo-se passar por estudantes, esses policiais entraram no prédio da reitoria. Lá, um carregando pistola e o outro, cassetete, prenderam o professor Valdir Aparecido (na foto, ao centro, camiseta branca, óculos escuros), do Departamento de História do campus de Porto Velho. Esse mesmo cassetete seria utilizado em seguida para agredir o deputado federal Mauro Nazif (PSB-RO, camisa azul clara, no alto da imagem, à direita). O dono da camiseta laranja (só aparece um pedaço, no canto inferior, à esquerda da foto) é o policial que pegou a câmera de um dos professores que estava registrando tudo.
Este vídeo detalha o que aconteceu.
“Houve várias formas de pressão e repressão, desde as mais veladas, como ameaças em estágios probatórios e reprovação de alunos em greve, até as mais escancaradas, como a ‘visita’ feita à casa de uma aluna por homens encapuzados, que gritaram de um carro ‘você vai morrer’, e o bilhete deixado, na manhã do dia 16 de novembro, sob a porta de laboratórios, departamentos e banheiros”, denuncia o antropólogo e professor Estevão Rafael Fernandes, chefe do Departamento de Ciências Sociais da Unir. “O bilhete dizia ‘Não adianta contar vitória antes do tempo. Muita água ainda pode rolar… Segue (sic) alguns nomes que podem descer na enchente do rio’ Aí, nomeava cerca de 40 professores e alunos da capital e do interior do Estado, incluindo o meu.”
“‘Descer na enchente do rio’ é uma evidente menção ao hábito que existe na região de se desovar cadáveres no rio Madeira”, acrescenta o professor. “Uma clara ameaça de morte a alguns dos envolvidos na greve.”
Ameaças que, diga-se de passagem, não são novidade para Estevão Rafael Fernandes, que, como antropólogo, lida com demarcação de terras indígenas, e também é coordenador do Observatório de Direitos Humanos de Rondônia. Eis nossa entrevista:
Viomundo – O que levou a essa prolongada greve na Unir? No caso dos professores, foi por melhoria do salário?
Estevão Rafael Fernandes – Salário?! Nãoooooooooo! Esta greve não é nem nunca foi por salário. Ela teve início quando alguns alunos se uniram para começar a exigir melhores condições de estudo na universidade. A coisa foi crescendo, crescendo, e os professores acabaram aderindo.
É complicado estudar ou trabalhar em uma universidade localizada a 14 km da cidade, que fica entre o canteiro de obras da Usina de Santo Antônio (devido às explosões por lá de vez em quando o campus treme) e o cemitério (que pode estar contaminando o lençol freático), tendo ao lado o lixão municipal (onde frequentemente colocam fogo e as aulas têm de ser canceladas devido à fumaça tóxica).
Não temos extintores de incêndio, cobertura nos pontos de ônibus, restaurante universitário, telefones, manutenção nos aparelhos de ar condicionado… Brinco com meus alunos, dizendo que nosso campus parece ter saído daquela música do Vinícius de Moraes, “A Casa”…
Aí, te pergunto: como estudar e trabalhar em um lugar onde não se têm ônibus suficiente, iluminação à noite, água sequer para beber e muito menos, o que é pior, para se dar descarga nos banheiros?!
Tem um laudo técnico do Corpo de Bombeiros ( íntegra, AQUI), que mostra bem a situação do campus, inclusive com coisas que sequer sabíamos, como a existência de dois pára-raios radioativos! Entre texto e imagens, tem 28 páginas.
Enfim, alunos e professores resolveram paralisar suas atividades para reivindicar melhores condições de trabalho e estudo, que já tinham sido solicitadas em 2008.
Na ocasião, o professor Januário Amaral, que já era o reitor, assinou um documento (disponível AQUI), comprometendo-se garantir as condições necessárias para o funcionamento do campus.
Mas não cumpriu. Em setembro deste ano, quando a paralisação foi deflagrada, ele respondeu que 95% da pauta dos grevistas estava atendida. Diante disso, o diálogo cessou, os colegas do interior (alunos e professores) aderiram ao movimento e surgiram as denúncias de irregularidades no uso de recursos públicos e em alguns concursos. A pauta de reivindicações do movimento grevista passou a ser então a saída do reitor e a investigação imediata de todas as denúncias feitas contra ele e sua gestão.
Viomundo – Qual foi o nível de adesão?
Estevão Rafael Fernandes – Praticamente todos os cursos aderiram à greve, em todos os campi. Os que não entraram em greve foi por medo de represálias ou por terem, entre seus quadros, pessoas diretamente envolvidas nas denúncias. Interessante é que muita gente, apesar do medo de represálias (especialmente os professores em estágio probatório), tem apoiado o movimento nos bastidores, postando textos, conversando com os alunos…
Viomundo – Apesar de o movimento já durar mais de dois meses, só nos últimos dias teve cobertura nacional. Por quê?
Estevão Rafael Fernandes — Esse foi um dos pontos mais sensíveis do movimento. A invisibilidade das nossas ações na mídia nacional nos assustou. Na minha avaliação, não há uma apenas uma resposta para esse comportamento da mídia, mas várias possíveis.
Uma delas, evidentemente, é a ação de forças políticas locais contrárias ao movimento, posto que foi de encontro a interesses de pessoas e/ou grupos que elas representam. Nós, alunos e professores, queremos ética e transparência no uso dos recursos da universidade. Mas isso, tudo indica,contraria muita gente.
Outro motivo é a distância, não apenas física, mas também em termos de informação em relação à Rondônia e à Amazônia, de modo geral. Apesar de sermos 48% do território nacional, a população do Centro-Sul parece desconhecer as especificidades da nossa região. Imagina que aqui haja meia dúzia de “caboclos” e onças andando livremente pelas ruas. Isso faz com que até o Governo Federal, por exemplo, pense a agenda amazônica apenas como um grande bolsão de recursos naturais e/ou energéticos a serem explorados, deixando um imenso vácuo institucional por aqui.
É nesse vácuo que operam o coronelismo e o personalismo locais, e o jornalista Everaldo Fogaça, editor do site O Observador, foi ameaçado e constrangido por agentes públicos em sua própria casa. Motivo? Ter publicado uma nota do DCE da Unir! Intimado a comparecer à Polícia Federal para dar explicações sobre a origem da nota, ele foi indiciado por um delegado da Polícia Federal.
Esse tipo de coisa nos faz pensar: se essa greve fosse em São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília, como teria sido a repercussão desde o início? Certamente seria maior do que aqui em Rondônia.
Viomundo – O que achou do indiciamento do jornalista pelo delegado da PF?
Estevão Rafael Fernandes — Atinge não apenas a liberdade de imprensa e de expressão, mas também os direitos humanos fundamentais de modo geral. Daí a importância de a imprensa nacional cobrir o que acontece aqui. Além de ser uma forma a mais de cobrar transparência e rapidez nas investigações das denúncias, é fundamental para resguardar a integridade física de professores e alunos, seus familiares, simpatizantes do movimento e jornalistas.
Nosso movimento nos diz muito não apenas sobre a Amazônia brasileira hoje, mas, de certa forma, sobre como a distribuição de poder no país interfere em assuntos como a educação pública.
Viomundo – Soube que houve pressão, intimidação e repressão aos participantes movimento. O senhor confirma?
Estevão Rafael Fernandes – Houve, sim, várias formas de pressão e repressão, desde as mais veladas (como ameaças em estágios probatórios e reprovação de alunos em greve) até as mais escancaradas, como o bilhete deixado na manhã do dia 16 de novembro, sob a porta de laboratórios, departamentos e banheiros da universidade.
O tal bilhete dizia: “Não adianta contar vitória antes do tempo. Muita água ainda pode rolar… Segue (sic) alguns nomes que podem descer na enchente do rio”, nomeando, em seguida,38 professores e alunos da capital e do interior do Estado, incluindo o meu.
“Descer na enchente do rio” é uma menção evidente ao hábito que existe na região de se desovar cadáveres no rio Madeira. Ou seja, uma ameaça clara de morte a alguns dos envolvidos na greve.
Nesse mesmo dia, uma aluna de Psicologia foi “visitada” em sua casa por homens encapuzados que gritaram de um carro: “você vai morrer”. Essa aluna foi uma das que iniciaram o movimento e fez parte da comissão de negociação que foi ao MEC, em Brasília, relatar o que estava acontecendo na Unir. Ela foi seguida também em Porto Velho. Alguns outros alunos e professores foram igualmente seguidos e hoje dormem em casas de amigos ou parentes e tentam mudar um pouco a rotina.
No início deste mês, outro professor, desta vez do campus Rolim de Moura, teve seu carro atingido por um tijolo, arremessado por um motociclista. Junto ao tijolo, um bilhete escrito com letras recortadas de revista: “Se o semestre for cancelado a próxima (sic) será na sua cara, filho de uma vadia”.
Viomundo – Além da prisão do professor Valdir, em 21 de outubro, houve outras?
Estevão Rafael Fernandes — Em 4 de novembro, dois alunos que carregavam panfletos.
Viomundo – Como se deu a prisão do professor Valdir?
Estevão Rafael Fernandes – Foi em uma tentativa desastrada de desalojar o prédio da reitoria, que estava ocupado pelos alunos. Agentes da Polícia Federal prenderam o professor Valdir Aparecido, do Departamento de História, e agrediram o deputado federal Mauro Nazif (PSB-RO), que estava tentando negociar. O professor Valdir não estava fazendo nada a não ser observar a cena, chupando um pirulito!!! Infelizmente, tivemos a própria Polícia Federal como protagonista em alguns episódios lamentáveis da nossa greve.
Viomundo – A previsão é de que a greve termine na segunda-feira após a posse da vice-reitora Maria Cristina Victorino de Frença como reitora. Se o professor Januário Amaral não tivesse renunciado, o movimento continuaria?
Estevão Rafael Fernandes – Claro que sim! Há um mês e meio os alunos dormem em uma reitoria, cuja luz e água foram cortadas a pedido do reitor. Eles estão lá para salvaguardar os documentos que, eventualmente, servirão como provas para a Polícia Federal e o Ministério Público nas investigações. Amigos e colegas professores têm dormido ao relento, nas escadarias dessa mesma reitoria, para resguardar a segurança física de nossos alunos. Alunos e professores têm sido ameaçados, presos e agredidos. Por isso, te garanto: o movimento continuará até que a professora Maria Cristina Victorino de França seja empossada como a nova reitora.
Abrir mão do movimento, agora, seria cuspir sobre os valores que vem sendo defendidos: democracia, ética, transparência. É ignorar que não se trata de um movimento orquestrado por uma minoria, sob alguma bandeira político-partidária, mas algo que surgiu espontaneamente, a partir do sentimento comum de que as coisas não podem mais seguir como estão. Seguir na luta é ir contra a inércia, contra a corrupção…
Temos, naquelas escadarias da reitoria, a maior aula de democracia que se pode querer! Os alunos e professores querem um hospital universitário, um colégio de aplicação, transparência em contratos e concursos… Portanto, não haveria como interromper o movimento agora, se o reitor não tivesse renunciado. Alguém se submeteria ao que temos nos submetido senão por um sincero e intenso amor pelo que representa uma universidade pública e gratuita de qualidade!??
Precisamos que mais vozes de outras partes do país se unam às nossas,dizendo que compartilham desses ideais, que buscam ética no ensino superior e transparência nas investigações dessas denúncias. Pedimos à população, seja ela sociedade civil organizada, centros acadêmicos, sindicatos, organizações não-governamentais, imprensa, academia, DCEs, entidades de base, que enviem emails à Presidência da República, Casa Civil, MEC, Ministério da Justiça e parlamentares, cobrando apuração rigorosa das denúncias.
Não há apoio que seja pequeno. Seja de outros estudantes, mães e pais de alunos, de outros professores… Toda a ajuda é mais do que bem-vinda, sempre!
Publicado no sítio Viomundo.
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