Apresento a seguir excertos da postagem de hoje do Blog da Boitempo intitulada Trabalho docente e precarização do homem-que-trabalha, um artigo escrito por Giovanni Alves. Trata-se de leitura das mais interessantes, e a íntegra do artigo pode ser lida no citado blog (clicar aqui).
O Projeto CineTrabalho, com o apoio da Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de Marília (SP), produziu recentemente o vídeo-documentário intitulado “Professoras de Marília”, de Giovanni Alves (Praxis vídeo, 40 min). O Projeto CineTrabalho tem como objetivo dar visibilidade ao mundo do trabalho, pois no mundo fetichizado do capital, o mundo do trabalho é invisível. Deste modo, produzimos vídeo-documentários sobre o mundo do trabalho voltados para a reflexão crítica sobre a condição de proletariedade de trabalhadores e trabalhadoras assalariadas. Este pequeno artigo foi elaborado como subsídio analítico para a reflexão crítica sobre o vídeo-documentário “Professoras de Marília” (vide abaixo), registro audiovisual da condição de proletariedade de professoras da rede municipal de educação infantil e ensino fundamental da cidade de Marília (SP).
O documentário “Professoras de Marília” apresenta um conjunto de depoimentos das trabalhadoras da educação pública municipal que discutem suas condições de trabalho e o drama de adoecimentos de mulheres trabalhadoras. Ao mesmo tempo, é um documento audiovisual de professoras que expressam orgulho e amor pela profissão. Nosso objetivo foi expor a “contradição viva” do trabalho assalariado das professoras de Marília imersas naquilo que denominamos “precarização do homem-que-trabalha”. Elas não discutem salário ou plano de carreira profissional, mas sim condições de trabalho e seus impactos na vida pessoal, desvelando uma dimensão da precarização do trabalho que oculta a desefetivação do ser genérico do homem.(...)
A nova morfologia social do trabalho flexível que emerge com o capitalismo global caracteriza-se por dinâmicas psicossociais que implicam (1) dessubjetivação de classe, (2) a “captura” da subjetividade do trabalhador assalariado e (3) redução do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria.(...)
Nas condições de vigência do espírito do toyotismo, ideologia predominante do trabalho flexível, com a produção tornando-se totalidade social, o trabalho estranhado assume um caráter invasivo, corroendo a estrutura familiar e impregnando a vida pessoal com formas derivadas do trabalho abstrato (é o que analisei, por exemplo, no livro Trabalho e Subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório, Boitempo editorial, 2011).(...)
(...) O “espírito do toyotismo” torna-se o veículo das formas derivadas de valor que impregnam a vida social. De repente, a linha de produção não está apenas na fábrica ou no escritório, mas também na repartição pública, escola ou no recôndito do lar estranhamente familiar. Portanto, trabalho estranhado e valor (como produto do trabalho abstrato) impregnam as múltiplas atividades vitais do homem.
A condição de proletariedade não é apenas uma condição operária, no sentido clássico da palavra, mas sim, a condição existencial de individualidades pessoais de classe cativa da lógica do valor com seus impactos sociometabólicos. Este é o sentido da modernização capitalista que, sob o capitalismo global, assumiu dimensões intensas e ampliadas nos “trinta anos perversos” (1980-2010).(...)
Por exemplo, o “trabalho criativo” das profissões vocacionadas que exigem abnegação e doação, como o trabalho do formador ou o trabalho assistencial, são impregnados pela lógica do trabalho estranhado que cria uma implicação perversa onde, por um lado, o “trabalho criativo”, pela sua própria natureza, envolve a pessoa humana, pois implica cuidar de outras pessoas com dedicação e doação pessoal, como é o caso do trabalho do formador (as professoras de Marília, por exemplo); ou ainda de outras profissões como médicos, enfermeiros e assistentes sociais; mas, por outro lado, na medida em que a lógica do capital impregna a relação laboral das profissões vocacionadas, o “trabalho criativo” estranhado desefetiva o ser genérico do homem, “intoxicando” a vida pessoal, reduzindo tempo de vida a tempo de trabalho estranhado, corroendo o campo de desenvolvimento humano. Por isso, a crescente ocorrência da síndrome de burn-out nas situações de adoecimentos entre professores e professoras (o termo “burn-out”, que quer dizer “combustão completa”, caracteriza-se pelo esgotamento emocional, despersonalização e baixa realização pessoal).
Esta forma de adoecimento dissemina-se não apenas entre trabalhadores da educação, mas entre todas as categorias profissionais que executam o que denominamos “trabalho criativo” ou trabalho que implica por completo a subjetividade humana. Na medida em que o capital, por um lado, incorpora amplas atividades sociais no rol de trabalho criativo, tendo em vista a constituição da “sociedade de serviços”, por outro lado, ele os impregna da lógica do trabalho abstrato, com o processo de trabalho capitalista adquirindo uma dimensão de perversidade (o trabalho doméstico ou trabalho do lar pode-se considerar também trabalho criativo com implicação estranhada não por conta diretamente do estranhamento de classe, mas sim do estranhamento de gênero, a opressão masculina, forma primordial da opressão do capital. Indiretamente a opressão de gênero, como a opressão de etnia, compõem a determinação estrutural da dominação de classe na sociedade burguesa).(...)
A questão da invasão do tempo de vida pelo tempo de trabalho é a principal característica do “trabalho criativo” com implicação estranhada. Primeiro, a natureza do “trabalho criativo”, trabalho imaterial das profissões vocacionadas ou atividades laborais que envolvem a subjetividade humana por completo, contribui para a permeabilidade entre tempo de trabalho e tempo de vida. Na medida em que o “trabalho criativo” impregna-se da lógica do trabalho abstrato, trabalho alienado, trabalho heterônomo para outro, trabalho humano subordinado, constitui-se a invasão (ou redução) do tempo de vida pessoal, tempo para si, em tempo de trabalho estranhado, tempo para outro. O operário, empregado ou profissional ao tornar-se “patrão de si mesmo”, tendo em vista que o trabalho criativo pressupõe uma margem de autonomia (ou “autonomação” no léxico toyotista), ele torna-se irremediavelmente, por conta da “manipulação reflexiva”, “carrasco de si mesmo”.(...)
...o problema não reside na implicação criativa do binômio trabalho-vida/vida-trabalho, mas sim, na impregnação do trabalho criativo pela lógica do trabalho abstrato, com sua dimensão alienada – trabalho para outro e trabalho subordinado à lógica do capital com suas personificações estranhadas (mercado e Estado político).
Mesmo professoras da rede pública executam um trabalho alienado, pois estão subordinadas à divisão hierárquica do trabalho que caracteriza o controle do metabolismo social do capital em sua forma estatal. Na verdade, o trabalho estranhado encontra no trabalho criativo o veículo ideal para invadir espaços vitais dos artífices.
A série de depoimentos das professoras de Marília expostas no vídeo-documentário, trabalhadoras públicas da educação, dão visibilidade à dimensão de perversidade do “trabalho criativo” com implicação estranhada. Por um lado, elas executam um trabalho de amor e dedicação profissional; mas, por outro lado, o trabalho pedagógico torna-se um fardo com o peso das cobranças e outras mazelas da sociedade burguesa em sua etapa de barbárie social que desefetivam o sentido do oficio de professora (por exemplo, o peso da responsabilidade das professoras, obrigadas a assumir a tarefa da família). Nesse caso, trabalho estranhado e estranhamento social com a crise da instituição familiar, dilaceram o “trabalho criativo” das professoras.(...)
Ao mesmo tempo, o estranhamento social ampliado que caracteriza a sociedade burguesa em sua fase de barbárie social impregna a atividade profissional da “criação pedagógica” na medida em que elas assumem responsabilidades por tarefas de formação moral, tarefas próprias da instância familiar. E o pior: exercem uma profissão com baixa valorização social e reconhecimento salarial.
O filósofo Friedrich Nietzsche no livro Humano, demasiado humano disse que, quem não dedica 2/3 do seu tempo de vida para si, é um escravo. Diz ele: “Todos os homens se dividem, em todos os tempos e hoje também, em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito”.(...)
(...) A precarização das ditas “classes médias” oculta a ampliação da condição de proletariedade e a explicitação da precarização do homem-que-trabalha como traço indelével da barbárie social do capital. Por isso, trabalhadores assalariados do setor privado ou setor público são verdadeiros escravos assalariados, pois cada vez mais, não têm tempo-para-si, mas sim apenas tempo-para-o-Outro-estranhado, que pode ser o capitalista ou entidades impessoais como o Mercado ou o Estado político como “ente público”. Eis a expressão da desefetivação do ser genérico do homem.
O adoecimento é a expressão suprema da precarização do homem-que-trabalha, tornando-se elemento compositivo de sua desrealização humana e pessoal. Entretanto, o adoecimento pessoal é tão somente a situação-limite do estranhamento que perpassa hoje a sociedade burguesa, sociedade doente devido ao desequilíbrio estrutural entre homem e natureza provocada pela propriedade privada e a divisão hierárquica do trabalho.
Em 1898, V. I. Lênin no seu artigo “Sobre as greves”, observou: “Mas quando os operários levantam juntos as suas reivindicações e se negam a submeter-se a quem tem a bolsa de ouro, deixam então de ser escravos, convertem-se em homens e começam a exigir que seu trabalho não sirva somente para enriquecer a um punhado de parasitas, mas que permita aos trabalhadores viver como pessoas.” [o grifo é nosso] Naquela época, a classe operária era a portadora da condição de proletariedade que hoje, assume dimensão universal entre trabalhadores assalariados da indústria, serviços e administração pública.
A greve e o movimento operário eram formas sociais de luta contra a escravidão assalariada, luta por direitos capazes de permitir aos trabalhadores viver como pessoas humanas. A dessubjetivação de classe que esvazia a luta coletiva contra a escravidão assalariada aprofunda a precarização do homem-que-trabalha e a desefetivação da pessoa humana como sujeito histórico capaz de “negação da negação”.
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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.Em 2012, dirigiu também o curta-metragem Precários inflexíveis. Confira abaixo:
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