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Geólogo e professor aposentado, trabalho este espaço como se participasse da confecção de um imenso tapete persa. Cada blogueiro e cada sitiante vai fazendo o seu pedaço. A minha parte vai contando de mim e de como vejo as coisas. Quando me afasto para ver em perspectiva, aprendo mais de mim, com todas as partes juntas. Cada detalhe é parte de um todo que se reconstitui e se metamorfoseia a cada momento do fazer. Ver, rever, refletir, fazer, pensar, mudar, fazer diferente... Não necessariamente melhor, mas diferente, para refazer e rever e refletir e... Ninguém sabe para onde isso leva, mas sei que não estou parado e que não tenho medo de colaborar com umas quadrículas na tecedura desse multifacetado tapete de incontáveis parceiros tapeceiros mundo afora.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Votos brancos, nulos e abstenções:
mais um mito desfeito
(31out2012)

Mito desfeito

Por Paulo Moreira Leite, em Vamos combinar

O mais novo mito das eleições municipais de 2012 informa que tivemos um alto número de brancos, nulos e abstenções. Até a presidente do TSE, Carmen Lucia, se disse preocupada com isso.

Como também tivemos um alto número de votos a favor dos candidatos do PT — partido que mais cresceu entre os grandes, tornou-se líder nacional de votos, além de levar o troféu maior que é São Paulo —  é fácil imaginar que há muita gente associando uma coisa a outra. Assim: baixa participação popular, alta votação para o partido de Lula. Nós sabemos aonde essa turma quer chegar, certo?

Querem dizer que a população está se cansando de votar.

Ainda bem que existem repórteres interessados em descobrir a verdade por baixo das aparências e do senso comum. Roldão Arruda revela, no Estado de hoje, que o problema não está na vontade de votar — mas no registro eleitoral. Em cidades onde o cadastro eleitoral não é atualizado, a contabilidade das  ausências produz números maiores. Uma consulta a votação nas capitais mostra isso. Em cidades como São Paulo e São Luiz, onde o cadastro não é atualizado há mais de 20 anos, a abstenção bateu em 20% entre os paulistanos e chegou a 22% entre os moradores da capital do Maranhão. Já em Curitiba, onde o cadastro foi feito há um ano, a abstenção fica em 10%. Os cadastros velhos mantém como eleitores aqueles cidadãos que já morreram, que se mudaram, que já não tem obrigação de votar. “Se todos os eleitores forem recadastrados, a abstenção tende a cair para 10%, soma razoável de pessoas doentes, que viajaram ou que tem mais de 70 anos e não querem mais votar,”afirma Jairo Nicolau, um dos mais respeitados estudiosos do comportamento do eleitor.

A má interpretação dos abstenções animou a turma que combate o voto obrigatório e pretende instituir o voto facultativo. Há bons argumentos a favor de uma coisa ou de outra mas é bom lembrar que a distribuição renda favorece o voto facultativo. Ou seja: nos países onde o voto é facultativo, há uma proporção maior de ricos que comparecem às urnas, por motivos fáceis de explicar. A  pessoa tem  mais recursos, mais tempo livre, mais facilidades de locomoção, mais facilidade para deixar o trabalho e exercer o direito de escolher o governante. Imagine o voto facultativo no interior de um estado pobre, dominado por nossos coronéis. Bastaria suspender o transporte nos bairros adversários para se ganhar uma eleição, não é mesmo?

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Quem não sabe votar não merece
o direito de eleger alguém
(29out2012)


Por Leonardo Sakamoto, no Blog do Sakamoto

Estava precisando baixar minha autoestima e resolvi ler com atenção os comentários de alguns posts que acabaram gerando polêmica neste espaço. Notei que, com uma certa frequência, alguns leitores reclamam do que interpretam como “politicamente correto”. Ficam irritados com essa “onda” de criticar quem manifesta preconceito por cor de pele, orientação sexual, classe econômica e por aí vai.

Cadê meu direito de tripudiar os párias da sociedade? Eu venci na vida, sofri muito bulling social. Agora é minha vez!

Da mesma forma que no dia seguinte ao segundo turno das eleições de 2010, internautas usaram as redes sociais para exalar preconceito contra moradores da periferia do município de São Paulo, onde o candidato do PT teve maior votação. Surgiram coisas do naipe de “Pobre não sabe votar” e “É isso que dá deixar essa gente votar”. Em 2010, quando o Nordeste garantiu uma quantidade expressiva de votos para Dilma Rousseff, houve uma enxurrada de destempero na rede. Comentários “sinceros” e “politicamente incorretos” – como muitos dos leitores deste blog gostam de batizar esses petardos preconceituosos e violentos – mostraram que estamos longe de entender o que é democracia.

É triste constatar que, quando uma eleição apresenta um nível sofrível de debates sobre políticas e é calcado em baixarias, de qualquer lado que seja, ela invariavelmente descamba para um fim melancólico de guerra online, revelando o que há de mais obscuro na alma das pessoas.

Todos nós que fomos criados em uma sociedade racista, machista, homofóbica e elitista temos que percorrer um longo caminho para abandonar a programação bizarra a que fomos submetidos. Portanto, estes momentos são didáticos para que aprendamos com nossos erros no dia a dia, façamos correções de rumo e possamos nos reconstruir e construir uma sociedade melhor. Mas esses comportamentos não deixem de assustar.

Após as eleições de 2010, colegas jornalistas receberam spams que defendiam a necessidade de separar o Estado de São Paulo e a Região Sul do restante do país por conta do resultado da votação. Quem tem 30 anos ou mais lembra daquela campanha “O Sul é meu país”, que circulou com adesivos de qualidade duvidosa, acrescentando São Paulo a esse delírio separatista. Por um momento, parecia que a campanha estava de volta.

Tanto naquele momento quanto agora, nada sobre juntar quem não concorda com o governo eleito e fazer uma oposição firme, programática e responsável – não só aqui, mas em outras cidades do país. Até porque, como sabemos, a tática do “perder e levar a bola embora” é super madura e fortalece a democracia, seja em São Paulo, Fortaleza, qualquer lugar.

Já usei este exemplo aqui, mas acho salutar resgatá-lo. Por mais que o filme original não seja um primor de roteiro e de execução, seria extremamente didático para esse pessoal que espuma preconceito se houvesse uma versão tupiniquim do norte-americano “Um Dia sem Mexicanos”. A ideia da película simples: os imigrantes latino-americanos, que custam algumas centenas de milhões em serviço social e retornam bilhões em mão-de-obra, um dia somem da Califórnia – para a alegria dos xenófobos. Mas a vida se torna um caos com o sumiço deles. Por aqui, seria algo como “Um Dia sem a Periferia” (lembrando que “periferia” não é um conceito geográfico, mas sim social), com roteiro gravado em São Paulo:

A socialite acorda e vê seu poodle completamente despenteado. Tem um piti e grita pela empregada responsável pelo serviço que, pasmem, não estava em seu quartinho. Nada. O empresário chega de seu cooper matinal e percebe que seu suco de laranja não está espremido como devido. Grita pelo mordomo. Nada. O editor reclama que o motoboy não apareceu para levar as provas para a gráfica. Nada.

“Deve ser enchente na favela onde moram os filhos delam. Ela está sempre à mão, sabe? É pobre, mas tem caráter. Nunca sumiu nada lá em casa.”/”É o quarto dia que aquele sujeito não vem. Sabe o que é isso? É o Bolsa Família! Torna as pessoas vagabundas. Deve estar bebendo em um bar”/ “Combinei uma coisa com ele e ele não veio. Esse povinho da periferia, viu? Se não caga na entrada, caga na saída.”

E por aí vai. Até porque, como todos sabemos e o preconceito rastaquera paulistano reafirma diariamente, muitos dos moradores pobres da periferia da cidade estão em ocupações subalternas porque gostam disso.

Seja na superfície, através de risinhos, ironias e preconceitos, seja estruturalmente, via baixos salários e uma desigualdade gritante, já passamos o recado de quem manda e quem obedece na cidade. Direitos sociais e econômicos já são sistematicamente negados. Agora passamos a dizer não também aos direitos políticos? Qual o próximo passo?

Revogar a Lei Áurea?

Abaixo-assinado Que o STF julgue o Mensalão do PSDB, Pai de todos os Mensalões!
(29out2012)

Clique aqui para acessar a petição e, em concordando com seu teor, assinar.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

De poste em poste...
(24out2012)


Haddad, Pochmann e o programa luz para todos

Publicada quarta-feira, 24/10/2012 às 20:20 e atualizada quarta-feira, 24/10/2012 às 20:57 no sítio Escrevinhador

Por Izaías Almada

Fui ao dicionário procurar o significado do adjetivo degradante, pois é sempre recomendável usar as palavras com o seu sentido exato. E lá está: “aquele ou aquilo que degrada”, isto é, aquilo que priva de graus (retira gradativamente) dignidades ou encargos. São sinônimos de degradante os adjetivos: aviltante, desonroso, infamante.

Pois bem: o degradante (aviltante, desonroso, infamante) espetáculo proporcionado pelo julgamento da AP 470, onde a maioria dos atuais membros do Superior Tribunal Federal não teve escrúpulos em jogar a justiça brasileira no lixo da história, condenando e absolvendo sem provas, está proporcionando ao país, além da revolta e ressaca moral pela pantomima, a possibilidade de inúmeras reflexões, muitas delas apaixonadas – é verdade – mas nem por isso isentas de seriedade e com a firme intenção de entender o que está acontecendo nesse novo e ao mesmo tempo velho Brasil.

Novo pela vontade de mudar, velho pelo medo de mudar. Novo porque os que de fato querem as mudanças não são muitas vezes compreendidos por muitos dos que sempre se julgaram a vanguarda das mudanças. Novo porque, por vezes, e muitos se esquecem disto, as antigas teorias também se tornam velhas. Novo porque o proletário que ousou arriscar mudanças não se encaixava muito bem no perfil de antigas teorias revolucionárias.

E o fato é que a nova, imperfeita e titubeante democracia brasileira acaba de fazer os seus primeiros e velhos presos políticos. Paradoxo? Ironia? Ou alguém em sã consciência ainda considera que José Dirceu, José Genoíno e o PT estão sendo julgados por corrupção?

A reflexão que faço é singela, sem escoras acadêmicas ou pretensamente eruditas, a saber: se o Partido dos Trabalhadores incomoda e desagrada a direita brasileira ao mesmo tempo em que não satisfaz aos sonhos dos mais arraigados fundamentalistas da esquerda, qual a razão do ódio que se tem dedicado a esse partido e a alguns de seus principais militantes? Leia-se a propósito as novas e inacreditáveis declarações do Sr. Plínio de Arruda Sampaio a respeito do partido que ajudou a fundar. Declarações dignas de um Gilmar Mendes ou de um Celso de Melo, velhos defensores do conservadorismo e do atraso nacional.

Por acaso o PT inventou a corrupção no Brasil? Seriam de fato suas necessárias alianças para governar tão espúrias assim? As diversidades de opiniões e de pontos de vista não pressupõem alianças político-partidárias quando não se tem maioria num Congresso de formação conservadora e dominado por lobbies ruralistas e rentistas entre outros?

Para não recuarmos muito na história do país, basta lembrar que a elite brasileira criou uma estrutura para o exercício do poder político que sempre a favoreceu. E quando essa estrutura se viu minimamente ameaçada, essa mesma elite apelou para golpes de estado, sedições e tentativas de impedimentos de posse para presidentes eleitos. Para o bem e para o mal, sem alianças com a burguesia e com os picaretas e oportunistas de plantão que habitam nossas casas legislativas (o que abrange todo o espectro partidário brasileiro, sem exceções) não se governa o Brasil. A estrutura está montada assim e não adianta choro ou ranger de dentes. Ou isso ou uma revolução popular… Ou isso ou uma estratégia para que se possa governar para os mais humildes, para a maioria, sem perder o poder político.

Se abrirmos ao longo do tempo a caixa preta das relações promíscuas entre governos municipais, estaduais e o governo federal com os órgãos de comunicação, por exemplo, para não falar das grandes obras de infraestrutura (favorecimentos, licitações de carta marcada, etc.), o odor da corrupção será insuportável. E isso há muitos e muitos anos. O que falar da construção de Brasília, por exemplo, ou das obras faraônicas durante a ditadura civil/militar? O metrô de São Paulo? As vergonhosas privatizações no governo entreguista de Fernando Henrique Cardoso, essa sim, uma corrupção comprovada por extenso material de investigação jornalística?

Dirão os mais ingênuos (ou cínicos?): mas em algum momento é preciso dar um basta à corrupção no país e alguém tem que servir de exemplo. Embora não me tenha na conta de cínico ou ingênuo, até concordo… Mas se o propósito dessa grande farsa jurídica montada em Brasília com o apressado julgamento do chamado “mensalão” é a exemplaridade, por qual razão não começar com outros julgamentos que esperam nas gavetas da Procuradoria Geral da República e do próprio STF?

E a corrupção que vem de cima, a do colarinho branco, aquela que é sabida e praticada pelos partidos que representam os interesses do poder econômico e dos grupos mais favorecidos da escala social? E tudo indica que não são poucos aí os homens e partidos envolvidos até ao pescoço. Aliás, sob esse aspecto, penso que alguns ministros nem deveriam estar no STF, muito embora eu não tenha as provas para acusá-los. Mas posso supor, pois agora já não se precisam de provas para acusar… Ou melhor, os ministros do supremo, se for o caso, que tratem de provar que são inocentes.

Por qual razão o exemplo tem que ser dado justamente com o partido que, bem ou mal, tem efetivamente trabalhado em função dos mais humildes? Ou existe outro partido à esquerda, no centro ou à direita que consiga crescer a cada eleição, que consiga superar os milhões de votos em eleições municipais e os mais de 60 milhões de votos em eleições federais?

A esse propósito sei que muito ainda se escreverá, mas como estamos a três dias do segundo turno eleitoral é sempre bom refrescar a memória e tentar minimamente um novo exercício consciente sobre o voto, mesmo que ainda seja o voto numa democracia burguesa, repito, falsamente representativa, mas com a qual temos que conviver e respeitar. Aprimorá-la, se possível, mas não à custa da criminalização da atividade política e de um julgamento com sérios indícios de farsa. E pior: com o desnudamento da falsa erudição de alguns integrantes do atual STF, onde o juridiquês e certa linguagem eivada de maledicências e descabidas ironias, para dizer o mínimo, revelam em que mãos (ou cabeças) o país deposita a imparcialidade que se espera da justiça.

Avanços e recuos à parte, o Brasil chega aos primórdios do século XXI ainda carente de instituições verdadeiramente democráticas e onde uma investida hegemônica dos meios de comunicação de massas, cada vez mais avassaladora e partidarizada, assume arrogantemente e acima das leis o papel de dona da verdade, demonizando o Partido dos Trabalhadores e a esquerda em geral, incluindo-se aqui a esquerda que duvida da própria esquerda.

No próximo domingo muitas cidades realizam o segundo turno das eleições municipais. Aqui no estado de São Paulo, duas delas – a capital e Campinas – podem fazer avançar as perspectivas do novo Brasil que, sob fogo da direita tradicional e da desconfiada esquerda de nariz torcido, vai lentamente acordando o gigante pela própria natureza.

As vitórias de Fernando Haddad em São Paulo e Márcio Pochmann em Campinas, se assim entender a maioria dos eleitores, poderá ampliar e repercutir no imaginário político brasileiro aquela que já é uma realidade adquirida em apenas um dos impactantes programas dos governos Lula/Dilma: o luz para todos. Como disse o ex-presidente Lula em seu último comício em São Paulo: os postes da nova geração do Partido dos Trabalhadores irão iluminar a política brasileira.

A partir do julgamento do voto, caberá, então, ao povo brasileiro estabelecer rapidamente a dosimetria com que deveremos avançar na reforma política, na reforma do judiciário e em nova regulamentação da lei de imprensa. Todo poder emana do povo e em nome dele deverá ser exercido.

Izaías Almada é escritor, dramaturgo e roteirista cinematográfico, é autor, entre outros, dos livros “Teatro de Arena, uma estética de resistência”, da Boitempo Editorial e “Venezuela, povo e Forças Armadas”, Editora Caros Amigos.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Como se monta um golpe de Estado
e como o POVO pode revertê-lo
(18out2012)

Hoje assisti ao vídeo "A revolução não será televisionada". Já havia assistido antes a um vídeo mais curto que mostrava a manipulação midiática em torno dos disparos feitos contra manifestantes nas ruas. A mídia montou as imagens de modo a dar a aparência que lhes interessava. Essa artimanha foi desmontada a partir de uma minuciosa análise da sequência de eventos ocorridos naquele dia. Havia, na verdade, um plano para criar confrontação popular entre apoiadores de Chávez e opositores ao seu governo.

Ao ver referências ao "A revolução não será televisionada", pensava eu que se tratava daquele vídeo que já havia assistido. Com vontade de rever aquele vídeo, busquei-o pelo Google e achei dois vídeos. Um mais curto, ao qual eu havia assistido, e o outro é um documentário feito por Kim Bartley e Donnacha O'Brian, com mais de uma hora de duração. Tenho que confessar que o vídeo me emocionou profundamente, levando-me às lágrimas em diversos momentos.

Esse vídeo é altamente elucidativo sobre o papel deletério que pode ser exercido pela mídia corporativa e oligopolizada contra o Estado de Direito e principalmente contra a real democracia.

Vejam o vídeo e cheguem às suas próprias conclusões:

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A CUT defende flexibilização de direitos trabalhistas. O Calendário Maia está correto: é o fim... da picada.
(18out2012)


O projeto de flexibilização trabalhista da CUT: o que é isso, companheiro?

Por Rafael de Araújo Gomes, em Viomundo.

No final de seu segundo mandato, o presidente Fernando Henrique Cardoso encaminhou um projeto de lei ao Congresso com o objetivo de permitir a flexibilização de direitos trabalhistas, através da ampla prevalência do negociado sobre o legislado.

Esse projeto de lei (n. 5.483/2001), que chegou a ser aprovado na Câmara dos Deputados, previa:  “O art. 618 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 618. As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição Federal e as normas de segurança e saúde do trabalho’”.

Ou seja, todo e qualquer direito não previsto expressamente na Constituição Federal poderia ser limitado ou excluído por completo através de negociação coletiva, exceto se relacionados à segurança e saúde do trabalho.

Apesar de sua aprovação na Câmara, esse projeto teve a tramitação conturbada e envolvida em intenso conflito, sendo energicamente denunciado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT) como uma tentativa de flexibilizar direitos trabalhistas e gerar precarização social.

A resistência encabeçada pela CUT e pelo PT, em 2001, acabou ganhando a adesão de grande número de outras entidades e especialistas em matéria trabalhista, entre eles o então presidente do Tribunal Superior do Trabalho, que defenderam inclusive a inconstitucionalidade do projeto.

O assunto atraiu, inclusive, a atenção da Organização Internacional do Trabalho, a partir de provocação da CUT e do PT, como esclareceu Maximiliano Nagl Garcez, da Assessoria Parlamentar do Partido dos Trabalhadores: “Respondendo a consulta apresentada pela CUT, a OIT, através do diretor do departamento de Normas Internacionais do Trabalho, Jean-Claude Javillier, condenou formalmente o projeto de flexibilização do artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho (P.L n. 5.483/01, na Câmara, e agora sob o n. 134/01, no Senado). A Organização Internacional do Trabalho considera que o projeto, caso transformado em lei, afrontará diversas convenções da OIT reconhecidas pelo Brasil, eis que as convenções e acordos coletivos de trabalho teriam força superior às convenções internacionais ratificadas por nosso país. O documento da OIT foi encaminhado ao governo brasileiro e às centrais sindicais, e condena a possibilidade de que os acordos coletivos contenham ‘disposições que impliquem menor nível de proteção do que prevêem as convenções da OIT ratificadas pelo Brasil’”.

Por esses motivos queixava-se em 2002 José Pastore, um dos principais representantes do pensamento neoliberal no meio trabalhista brasileiro, quanto às dificuldades para se conseguir aprovar com rapidez o projeto: “O PT e a CUT fizeram um estrondoso alarde durante a discussão do projeto de lei 5.483 que alterou o art. 618 da CLT. Pelos decibéis do alarido, estávamos próximos do fim do mundo. Isso criou no povo um sentimento de grande apreensão. Dizia-se que a nova lei iria revogar toda a CLT; que acabaria com o 13º salário, férias, licença à gestante; que os empregadores imporiam aos empregados condições selvagens; que sindicatos fracos fariam acordos em favor das empresas.”

A tramitação do projeto chegou ao fim quando, em 2003, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva requereu, através da Mensagem n. 78, a retirada do projeto, que então se encontrava no Senado.

De lá para cá passaram-se dez anos, o que não é muito tempo. De fato, em se tratando de convicções políticas e ideológicas sólidas e sinceras, dez anos não deveria ser tempo algum.

Entretanto, o brasileiro que porventura tiver passado a última década fora do país, e tiver retornado em 2012, sofrerá um verdadeiro choque. Ao abrir os jornais, talvez esse brasileiro venha a imaginar que foi magicamente transportado, como em um episódio da série “Além da Imaginação”, para uma dimensão paralela, na qual os fatos ocorrem da forma contrária ao que ocorre em nosso universo.

Esse brasileiro, que em 2002 leu José Pastore criticar a CUT por resistir ao projeto de lei de flexibilização de FHC, agora encontrará nos jornais o mesmo José Pastore dirigindo rasgados elogios à CUT por propor a flexibilização dos direitos trabalhistas: “A ideia é muito boa, porque prevê uma valorização da negociação entre as duas partes. Quando a negociação está amadurecida, é preciso dar oportunidade de fazê-la diferentemente de como a lei [a CLT, de 1943] estabelece”.

Qual é a “idéia muito boa” da CUT, que José Pastore está a elogiar?

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O Globo tenta fazer remake das vésperas
do golpe civil-militar de 1964
(17out2012)


O Globo enxerga fantasmas. Perigo!

Por Altamiro Borges

O editorial do jornal O Globo de ontem (16) é preocupante. Como na véspera do golpe militar de 1964, quando a famiglia Marinho alardeou o perigo do comunismo para justificar o atentado à democracia, o jornalão agora enxerga um pretenso “cerco à liberdade na América Latina” – segundo o título apocalíptico do texto. O alerta tem como base as resoluções da 68ª assembleia geral da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), o convescote dos barões da mídia encerrado nesta terça-feira (16) em São Paulo.

Para o jornal, “qualquer pessoa medianamente informada sabe que a democracia representativa passa por mais um ciclo de ataques na América Latina, região com longa história de recaídas autoritárias. Mas, quando é traçado o cenário de cada país, constata-se que há uma tendência de agravamento deste quadro... O destaque fica com a Argentina, onde o governo de Cristina Kirchner, que se mostra cada vez mais uma aplicada aluna do caudilho venezuelano Hugo Chávez, prepara uma espécie de assalto final ao grupo Clarín”.

Como nos pactos mafiosos, os barões da mídia se unem para defender o monopólio do Grupo Clarín, que está com seus dias contados. Em 7 de dezembro entra em vigor o capítulo da Ley de Medios que obriga este império a se desfazer de parte dos seus canais de rádio e tevê como forma de se estimular a pluralidade informativa e a concorrência no setor. O projeto foi aprovado por ampla maioria no parlamento argentino e tem o apoio da população, que saiu às ruas para criticar a ditadura midiática exercida pelo Grupo Clarín.

Para a famiglia Marinho, que não respeita as leis e os poderes constituídos, o fim do monopólio do Clarín é um “atentado à liberdade”. Pior ainda, ele sinalizaria um perigoso retrocesso na América Latina, que precisa ser contido. “No Equador, onde o governo também é plasmado pelo chavismo, e na Venezuela - nesta, por óbvio, por ser o farol do ‘socialismo bolivariano’ - os casos de violência contra jornalistas e veículos se sucedem... Há uma nuvem de autoritarismo sobre o continente. Ela se move e fica cada vez mais densa”.

Se bobear, a Rede Globo – que também exerce um monopólio no Brasil, com a propriedade cruzada de jornais, revistas, rádios, tevês abertas e a cabo, sítios e outros meios – daqui a pouco vai convocar uma “Marcha com Deus, pela família e em defesa dos impérios midiáticos”. O discurso terrorista da “nuvem de autoritarismo sobre o continente” servirá como pretexto para acirrar o clima político e para encontrar uma forma de novo golpe contra a democracia – talvez com a ajuda do Supremo Tribunal Federal (STF).

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O vídeo sobre a privataria tucana

Altamiro Borges: O vídeo sobre a privataria tucana: * Do blog de Renato Rovai

Eu li o livro e o vídeo dá uma pequena mostra dos muitos documentos lá apresentados, todos oficiais. Há um processo em curso no STF sobre esse tema. Vamos ver quando será julgado...

domingo, 14 de outubro de 2012

Literatura e o "cordial" racismo brasileiro!
Cordial para quem, cara-pálida?
(14out2012)


Dá licença, meu branco!

Reproduzido do sítio Sul 21

Monteiro Lobato: o escritor tem sua obra reavaliada sob o ângulo moral

Irene no Céu

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
(Manuel Bandeira)

No último dia 25 de setembro, não houve acordo na audiência de conciliação que discute a adoção do livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE). Acontece que o Conselho Nacional de Educação (CNE) liberou a adoção do livro para o Programa com uma nota explicativa sobre os “estereótipos raciais” utilizados por Lobato, atitude que o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara), autor do mandato de segurança, considera insuficiente. Na audiência, reuniram-se representantes do Ministério da Educação (MEC) com membros do Iara. Sem conciliação, a ação volta ao Supremo Tribunal Federal (STF) e será julgada pelo ministro Luiz Fux.

Há muita confusão, algaravia mesmo, a respeito do que seria uma tentativa do Iara de censurar a obra de Monteiro Lobato. Porém o que se discute não é a proibição a uma obra literária, mas a adoção ou não da mesma em um programa governamental. Ou seja, o que está em jogo não é a liberdade de expressão nem a retirada de Monteiro Lobato das livrarias.

Em 2010, o CNE já havia recomendado que Caçadas de Pedrinho fosse retirado do Programa. A recomendação causou indignação em parte da comunidade literária — que considerava que a medida restringiria a liberdade de expressão no país. “Cabe aos professores orientar os alunos no desenvolvimento de uma leitura crítica”, afirmou a Academia Brasileira de Letras na época.

Então, em 2011, o CNE voltou atrás e, hoje, como dissemos, Caçadas de Pedrinho é distribuído nas escolas com uma nota explicativa.

A questão não é simples. Monteiro Lobato é um autor lembrado com saudade por adultos que o conheceram durante suas infâncias. Contudo, quando lidos por adultos, seus livros podem surpreender em razão de conteúdos pesadamente racistas emitidos, por exemplo, por Emília, uma personagem que convida as crianças a uma plena identificação.

Abaixo, transcrevemos um texto de Ronald Augusto publicado em seu blog. Nele, o autor expõe com nitidez uma outra leitura de Lobato que não aquela dos nostálgicos de suas infâncias.

O poeta Ronald Augusto

Ronald Augusto é poeta, músico, editor e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de valha (1992), Confissões aplicadas (2004), No assoalho duro (2007), Decupagens Assim (2012) e Cair de Costas (2012). Dá expediente nos blogs: poesia-pau.blogspot.com e poesiacoisanenhuma.blogspot.com. É diretor associado do website Sibila.

Milton Ribeiro

.oOo.

Dá licença, meu branco!

Por Ronald Augusto


Irene preta, Irene boa. Irene sempre de bom humor. Quem quer ver Irene rir o riso eterno de sua caveira? Parece que só mesmo no espaço sacrossanto da morte, onde deparamos a vida eterna, está permitido ao negro não pedir licença para fazer o que quer que seja. Não se pode afirmar, mas talvez Manuel Bandeira tenha tentado um desfecho ambíguo para o seu poema: essa anedota malandramente lírica oscila entre “humor negro” e humor de branco, o que, afinal de contas, representa a mesma coisa. No além-túmulo – e só mesmo aí –, não nos será cobrado mais nada. Promessa de tolerância ad eternum, e sem margens, feita por um santo branco, esse constante leão de chácara do mais alto que lança a derradeira ou a inaugural luz de entendimento sobre a testa da provecta mucama. Menos alforriada que purificada pela morte, Irene está livre de sua “vida de negro”, mas, desgraçadamente, só ela dá mostras de não ter assimilado isso ainda; quando a esmola é demais o cristão fica ressabiado. Na passagem desta para melhor não temos à mão uma borracha que apague os arquivos do vivido. Quem sabe a ideia lhe pareça intolerável. Ao fim e ao cabo, continua negra, ou seja, naïf, burrinha; as luzes do seu espírito não são intensas a ponto de isentá-la da pecha de “faísca atrasada”. Irene ainda persiste, para a frustração do estafeta do juízo final, como uma negra da alma negra.


Não por acaso os personagens negros de Monteiro Lobato estão confinados dentro de lógica idêntica. Pretos e pretas solícitos, velhos e mansos, ou, no extremo, diabólicos e traiçoeiros, como o Saci, cachimbo no beiço e barretinho vermelho, compósito de Vulcano e Ossanha, rapazola deformado, sobre uma perna só e/ou coxo. Condição que talvez lhe faculte um pouco da tolerância do senhor, da capatazia social para com suas oscilações de ânimo advindas do duplo “estigma” físico. Seu caráter fantástico de espírito malévolo e respondão é relevado pelo déficit que ostenta relativamente à “boa aparência” dos senhores. Já Tia Nastácia, irmã siamesa de Irene, está fadada à humilhação doméstica, no livro As caçadas de Pedrinho é comparada a uma “macaca de carvão”. Só para avivar a humana emotividade dos devotos de Monteiro Lobato, registro aqui a existência do substantivo anastácio, de onde deriva o nome da personagem, e cuja acepção indica os significados de “simples e ingênuo: tolo, palerma”. Também o Tio Barnabé, esse natural pretendente à mão da Tia Nastácia, recebe um nome-condenação: barnabé, substantivo masculino que designa “funcionário público, especialmente o de baixo nível hierárquico”.


Monteiro Lobato: elogios à Ku Klux Klan em cartas pessoais

Essa espécie de recall a que vem sendo submetida contemporaneamente a obra de Monteiro Lobato tem como motivação suas ideias racistas e que se revelam abertamente em seus livros, e esse recall teve há pouco outro desdobramento. A revista Bravo!, cujos leitores são mimados por sua publicidade como gente cult, cool e pop, e cujo cinismo irônico e meritocrático de sua editoria está sempre a postos para tachar de bom-mocismo a crítica – vá lá! – mais à esquerda, pois essa revista de viés elitizante, há pouco publicou e repudiou o conteúdo de cartas onde Monteiro Lobato defende o racismo eugênico. Mas o assunto de capa parece ter causado um mal-estar no diretor de redação. Tanto é que escreve uma “carta do editor” tentando esclarecer – como assim? – os seus inteligentes leitores que o logotipo da revista, estampado no alto da capa, e que de hábito soa como uma interjeição de aplauso, não aplaudia em nenhuma instância a frase escrita por Monteiro Lobato, que de maneira atípica, na edição em causa, substitui a tradicional imagem de uma celebridade do meio artístico que por razões diversas é homenageada com esse espaço nobre. A frase diz: “País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Ku Klux Klan, é país perdido”. Há algo de cômico no fato, já que o editor dispara uma espécie de “não erramos” visando a colocar a publicação ao lado de uma maioria que está longe de ser cult ou cool. Um movimento kafkiano, um calafrio culposo arrepia esse acanhado editorial que tenta inutilmente forjar acepções menos efusivas ao logotipo de mão única que, por várias razões, se limita com a opção “curtir” da comunidade dos facefriends. Isto é, a negatividade crítica precisa dar explicações, precisa inventar sua relevância perante os fast thinkers, mas de modo a não corar a pudicícia da mulher de César. Quem repudia mais alto? Agora que a porta foi arrombada, compartilhar o bônus e mostrar indignação é moleza. A “interjeição de aplauso”, afinal, sempre fora uma contrafação.

“Sinceramente não sei o que este tipo de reportagem pode trazer de benefício”, alguns leitores-seguidores, devotos da figura de Lobato expressam assim sua perplexidade. Afinal de contas, segundo esses depoimentos emocionados, suas histórias ajudaram a salvar uns e outros de uma infância miseravelmente infeliz e solitária; este, aprendeu a ser perspicaz; aquela, tornou-se estudiosa e a ter esperança.


Monteiro Lobato faz parte da infância feliz de 
alguns brasileiros. Estariam os negros entre eles?

Todavia, se de fato sua obra inventou ou “modificou a infância e a juventude de muitos brasileiros”, podemos indagar se nesse percurso escritural, Lobato não teria deixado vazar, por assim dizer, suas vergonhosas posições racistas, inventando ou colaborando, por sua vez, para moldar o caráter de um adulto reprodutor desse “preconceito civilizado”, amistoso, que, segundo muitos, seria vantajoso relativamente à rudeza da ideologia de um apartheid emblematizado, por exemplo, na história dos conflitos étnicos sul-africano e norte-americano. Críticos disfêmicos argumentam que como contraveneno ou compensação ao racismo ingerido inadvertidamente “crianças e jovens que lerem Lobato terão um contágio de outra natureza: se tornarão adultos mais imaginativos com um interesse infinito por folclore e mitologia”. Se o crítico, com maldosa ingenuidade, aventa essa possibilidade por que não levar em consideração a possibilidade dessa mesma obra fazer com que crianças e jovens se tornem cidadãos anódinos com relação ao racismo velado e covarde de nossa formação? A obra de arte, concordando com a lógica do comentarista, graças a um engenhoso mecanismo de filtros, só nos concederia, então, benefícios? Quem garante que o texto promoverá tal reversão de sentido? Ah, o sentido! Fico com Jacques Derrida, que, expropriando Benjamin, escreve: “Mas o que ‘diz’ uma obra literária (Dichtung)? O que ela comunica? Muito pouco a quem a compreende. O que ela tem de essencial não é comunicação, não é enunciação.” Para além dessa observação, que pode ser útil tanto para um lado como para o outro, o que importa é como a obra será lida, e quem estabelece os novos parâmetros de leitura.

Volto à ideia-feita do “preconceito civilizado” de que o texto de Lobato seria paradigmático, e de que em comparação a outras formas mais rudes de ideologia segregacionista, a que ele esposa seria menos deletéria para o ânimo da “nossa juventude”. Entretanto, a questão não é escolher entre duas, aquela alternativa que se nos afigure menos ruim, mas, sim, debater de uma vez por todas, com franqueza e para além dos limites do anedotário, esse tema de fundo da formação brasileira, cuja dramaticidade fica desfocada graças ao estatuto da cordialidade de que nos servimos na tentativa de não nos tornarmos o que de fato somos.


Na novela O Presidente Negro, ambientada nos 
EUA, "Acima da America está o sangue".

Outro ponto diz respeito ao suposto verismo documental do autor, pois de acordo com essa visada “não há nenhuma passagem em Lobato que informe um jovem com uma mensagem racista de natureza diferente do mundo que a cerca”. Tudo bem, o racismo não está tão-só na prosa de Lobato, seu nascedouro não se dá aí, mas sim no tecido mesmo das relações sócio-afetivas do brasileiro imerso no pesadelo da história, isto é, a arte de Monteiro Lobato “denunciaria” sem esforço essa conformação ao preconceito naturalizado a que o senso comum e o autor não escapam. Pelo contrário, o autor do Sítio do Picapau Amarelo inclusive o reforça. Para essa leitura leniente, temos a chapa: “Até onde se sabe, vivemos no Brasil, não é mesmo?”. Sim, sim, então é normal que de tal modo se passem as coisas; que concordemos com esse Brasil retrógrado apenas transliterado desinteressadamente para o núcleo da obra de Monteiro Lobato. Lavação de mãos brancas.

Pedrinho e Narizinho, por sua vez, são a versão edulcorada do preconceito naturalizado no interior de um ethos dos “panos quentes”, que é típico de um país onde a mestiçagem é fruto do estupro escravista, e que, a um só tempo, se ufana e se envergonha de tal desenho étnico; o menino e a menina sempre em férias (com os quais todos se identificam) se encaixam na versão “tesouro da juventude” do filho do senhor de engenho em cuja famosa ilustração para o clássico Casa-Grande & Senzala figura montado num moleque negro o qual, na “brincadeira”, serve como besta de carga. Essa invariante romanesca do sinhozinho perverso montado no negrinho, que também fundamenta a visão de mundo do peralta Brás Cubas, atravessa a linha de fronteira entre o vivido e o imaginado. No capítulo XI, “O menino é o pai do homem”, de Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis plasma a tópica do nhonhô “menino diabo” e seu comportamento de mando. Brás Cubas rememora suas façanhas do idílio infante herdadas ao contexto familiar da escravidão: “(…) Prudêncio, um moleque de casa, era meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – mas obedecia sem dizer palavra ou, quando muito, um ‘ai, nhonhô!’, ao que eu retorquia: ‘Cala a boca, besta!’ – (…)”.

Esse Prudêncio ubíquo reaparece em diversos registros. No filme Joanna Francesa (1973, direção de Cacá Diegues), ele será o robusto negro Gismundo (Eliezer Gomes), não mais escravo, e que conquista uma pequena ascensão tornando-se agregado, mas que permanece a besta de carga de sempre, pois na cena final cabe-lhe carregar na cacunda, no lombo, a dona de prostíbulo Joanna (Jeanne Moreau) que abandona seu negócio em São Paulo e vai para Alagoas, pois se apaixona por um cliente, um decadente senhor de engenho. A história se passa nos anos 30.


Iberê Camargo: maltratando o negrinho Naná durante a infância.

De outra parte nas memórias do pintor Iberê Camargo, naquilo que lhe tocou viver, seja como complexo, seja como desejo recalcado, o brasão dos Cubas imprime sua marca. O guri da campanha, feito um personagem de um sonho borgiano, se depara maltratando o meio-irmão “de cor”. Destaco um breve trecho do texto “Ai, minhas feridas!” (Gaveta dos guardados, 2009), onde o pintor rememora um episódio da manhã de sua infância: “ – Ai, minhas feridas! – gritava o negrinho Naná, a pular num pé só, como o Saci, e segurando a canela com as duas mãos. Eu, guri estouvado, o havia machucado, brincando de guerra. (…) Eu corria atrás dele e procurava reconduzi-lo ao campo de batalha. Prometia não machucar mais. Naná não se deixava convencer. Era birrento. Emburrava. Empacava, pior que mula. Cansado de rogar, de agradar para que voltasse às boas, perdia a paciência. Aí, então, passava a maltratá-lo. Dava-lhe empurrões, socos e o escorraçava a pedradas”. Pobre Iberê Camargo, que teve de partilhar sua mãe-preta aparentemente sem nome civil. Note-se, em mais esse fragmento das memórias do pintor, o patético do seu drama: “Das minhas raras alegrias, uma me vem à mente: criança, aguardo ansioso a chegada do trem que traz a Bua”. A mãe noturna, mãe da hora-extra, mãe de leite do menino branco. Talvez por ciúme, o sinhozinho Iberê maltratava o moleque, pois esse, sim, deveria ser o filho de sangue da ama de leite, e não ele, sugador de empréstimo. Juliana Burn, a Bua, sua ama de leite cujo nome e sobrenome só nos é revelado em uma parca nota de rodapé. Esse ser que a custo é enquadrado nas fotografias das histórias privadas legadas à posteridade.

O continuísmo simbólico do universo do Sítio do Picapau Amarelo, seu sucesso reeditado há muitas gerações, vai a par da perpetuação do preconceito disfêmico, doce, macunaímico, que não ofende o jeito de corpo do Brasil. Preconceito que se resolve em anedotário. E a anedota mais torpe a respeito é a seguinte. Ninguém é racista ou preconceituoso, mas todos conhecem e identificam pessoas de sua relação, parentes inclusive, que o são. Corolário: cada brasileiro se apresenta então como uma ilha de tolerância étnica cercada por um mar encapelado de reaças eugênicos, nostálgicos de um tempo onde as coisas estavam no seu lugar; onde o negro estava em seu lugar.


Ilustração para Irene no céu, poema de Manuel Bandeira

A literatura de Monteiro Lobato no quesito “representação do negro” não é, entretanto, um caso isolado dentro das contradições que envolvem uma tradição de representação do outro dentro da literatura. Com efeito, trata-se de um absurdo, mas em nossa sociedade o negro ainda é o outro. Adaptando a boutade de Duchamp ao tema em questão podemos dizer que de ordinário quem paga a conta é o negro. As imposturas que acompanham inadvertidamente as “boas intenções” de Lobato são verificáveis — e similares àquelas encontradas — também em outros textos conhecidos e elogiados por todos nós. Cito alguns exemplos: os poemas negros de Urucungo de Raul Bopp; “Irene no céu” de Manuel Bandeira (já referido no início desse texto); “Essa Negra Fulô” de Jorge de Lima, etc. Tais obras, segundo o poeta Oliveira Silveira (1941-2009) são poemas que atendem a uma temática “negrista”, isto é, experimentos eventuais de linguagem no percurso textual desses autores que, a rigor, não passam de forasteiros simpatizantes-antipatizantes do “assunto”. Em outras palavras: brancos escrevendo sobre negros com vistas à ampliação do repertório e do seu discurso de poder.

Nessas obras esteticamente bem-sucedidas, de homens cultivados num safári através da selva áspera e forte, subjaz um “problema do negro” que à força de tanta reiteração (ardis de séculos e simbologias duvidosas) nos faz ratificar sua existência: aprendemos a temer infantilmente a África-tipo, feérica, selvagem e bela, bárbara e canibal — estupro de donzelas brancas enfeitiçadas por Mumbo-Jumbo (nonsense) ou Pai João. E sequer suspeitamos de que nossos irretorquíveis autores, graças ao seu engenho, acabaram inventando um “problema” na tentativa de fazer um outro invisível aos olhos de todos. Ou seja, o que sempre tivemos e ainda temos, mesmo, deixando de lado superciliosos eufemismos, é um imenso “problema do branco”.

O problema do branco é para o Brasil mais dramático do que a questão das saúvas que o sarcasmo macunaímico colocou na ordem do dia. Monteiro Lobato, esse branco paradigmático e vertical (seja lá que fantasia imperial isso suporte), que pretende inventar a infância, a economia e a pureza étnica brasileiras, se sente acuado pela bodarrada que, provavelmente, e como acontece com todos aqui, lhe informa o ser.


Trovas Burlescas, de Luiz Gama, em edição de 1904

Faço referência à “Bodarrada”, o conhecido poema do livro Trovas Burlescas (1859) onde, segundo Haroldo de Campos, Luiz Gama “arrasa com a prosápia dos nobres, dos brancos”. Mas, ao contrário de Lobato (que não se põe em relação com o outro), o poeta, graças a uma consciência luciferina, também se vê implicado na arenga com que desfaz os poderosos, pois em troca e na mesma moeda baixa, eles hão de chamá-lo “tarelo,/ Bode, negro, Mongibelo;/ Porém - prossegue Gama - eu que não me abalo,/ Vou tangendo o meu badalo/ (…) / Se negro sou, ou sou bode/ Pouco importa. O que isto pode?/ Bodes há de toda casta,/ (…) / Bodes negros, bodes brancos…”. Luiz Gama é um poeta cuja linhagem remonta a Gregório de Matos e a François Villon, representantes do “duro” em contraste com o “suave” na arte da poesia. Mas, o difícil é apontar essa dureza e a impertinência do riso sarcástico contra si mesmo. Felizmente, quanto a este quesito, Luiz Gama também não deve nada aos seus parceiros e precursores, pois ele, a plenos pulmões, desconta e canta: “Aqui, nesta boa terra/ Marram todos, tudo berra/ (…) / Em todos há meus parentes/ (…) / Folgue e brinque a bodaria;/ Cesse pois a matinada,/ Porque tudo é bodarrada”.

O sistema literário não quer que esqueçamos de que Lobato nos legou um bem inestimável: uma literatura infantil de altíssimo nível, e “as eventuais alusões racistas a personagens como a Tia Nastácia não tiram a prazer da leitura…”. Não tiram de quem, cara pálida? Talvez só não tirem o prazer da leitura àquele que jamais se dispôs a imaginar como deve ser passar “um dia de negro” no Brasil. Ora, a expressão “alusões racistas” trata-se de uma contradição entre termos. Chamar Tia Nastácia de “macaca de carvão” se não é um insulto racista, o que mais então seria?


Os nós sociais de seu contexto mereceriam 
ser trazidos às escolas públicas de hoje?

A pertinência da obra de Lobato estaria assegurada, segundo alguns analistas que fazem sua apologia, graças ao fato de que ela “carrega os conflitos de seu tempo, os nós sociais do contexto e da circunstância com que foi escrita”, assim, sua obra arrastaria o presente de volta ao passado “potencializando o futuro”. Não consigo relevar o triunfalismo dessa leitura. Aliás, não vejo como – a contrapelo dos que consideram Lobato como um dos escritores mais talentosos de sua geração –, não vejo como esse escritor mediano, no máximo um beletrista do entretenimento, jeca-sentimental, exalando por todos os poros seu preconceito contra o negro e a condição mestiça brasileira (leiam trechos de suas cartas publicadas na revista supracitada), pode “desvelar” ao presente a possibilidade de um futuro marcado pelo aprofundamento dos nossos dramáticos processos culturais.

Para os exegetas desse Lobato condenado a ser um escritor potencialmente transgressivo, a revelia de seu asqueroso racismo, o preconceito, quando identificado em sua literatura, se reverte em algo positivo. Entretanto, não se trata de ser positivo ou negativo, pois se estivermos diante de literatura de nível, esse preconceito, não obstante deva ser criticado, será secundário. Tratar-se-á de um conteúdo não essencial, de acordo com Walter Benjamin. Neste sentido a obra de Lobato fica nos devendo algo, porque a ela não interessam problemas do objeto, afinal o autor é pré-modernista, e por isso mesmo jamais entendeu que a grande conquista da literatura da virada século 19 para o século 20 foi a sua autonomia ficcional e estética. Por não ser capaz de perceber a relevância dos problemas do objeto como o interesse principal tanto da arte, como da literatura, é que Lobato, a partir de critérios menos clássicos do que nazistas, diagnosticou sintomas de paranoia e mistificação na conhecida exposição individual de 1917, onde Anita Malfatti apresenta suas obras pictóricas inspiradas nos movimentos estéticos da vanguarda europeia.

“Só tomo leite”, explicou a linda princesa.”Tenho 
medo de que o café me deixe morena”.“Faz muito bem”, 
disse Emília. “Foi de tanto tomar café que tia Nastácia 
ficou preta assim”

Mas ainda há aqueles que o defendem dizendo que pelo menos a leitura dessas passagens “controversas” gera “conflitos e questionamentos” ao contrário do que pretende a literatura politicamente correta de hoje, que aposta em algo que simplesmente seja palatável operando uma tolerância indiscriminada em torno do seu raio de motivação. Mas o ponto é que a literatura de Lobato, por si mesma, não pretende gerar “conflitos e questionamentos” acerca, por exemplo, dos problemas do racismo e do preconceito, nós é que, hoje, e a custa de muito esforço, conquistamos a opção de lê-la desse modo. A rigor, sua literatura é um espaço mantenedor das estruturas conservadoras, ou melhor, um lugar onde a desumanização e a subalternidade do negro mais do que preservadas são elogiadas. Lugar de nostalgia e de saudade de um mundo idealizado onde o sinhozinho branco faz travessuras e liberta o imaginário em seu sítio encantado.

Lobato escreve e inventa um tipo de obra que é “palatável”, sim, mas apenas para os defensores da meritocracia de fachada, para os retranqueiros da branquitude ameaçada em seus privilégios, pois seu mundo mitológico e folclórico é o mundo perdido do menino branco que se vinga no filho da mucama batendo nele, já que o moleque (eterno negrinho do pastoreio com a boca cheia de formigas), esse, sim, saiu das entranhas dela, e ele, nhozinho de calças curtas, é um parasita cuja mãe se negou a amamentar impondo o fardo à negra mais próxima. O Lobato criançola ama e odeia o mundo impuro situado além das cercas de suas férias de verão onde essa mãe, cujos seios ele babujou com seu afeto mais íntimo, é considerada, com todo carinho, como uma macaca de carvão.

sábado, 13 de outubro de 2012

Dos homens que abrilhantam e daqueles outros "iluminados" que produzem trevas para o país
(13out2012)


Desde há muitos anos tenho cá comigo que a riqueza estonteante do Brasil é a principal causa de sua miséria e de seus descaminhos. O Brasil dispõe de imensos e valiosos recursos naturais. Sempre foi assim, desde que Cabral chegou por aqui. Muita riqueza despertando ganas de enriquecimentos pessoais.

Enriquecimentos pessoais se dão pela exploração do trabalho de outrem. Assim, a necessidade de massas de pessoas que pudessem produzir riqueza para alguém colou-se à cultura brasileira. Muita riqueza, mas para poucos. Muito trabalho mal remunerado para o resto, a chusma, a cambada de lutadores pela sobrevivência que se submete ora à escravidão (sem a opção de escolha por parte do escravo), ora a legislações e salários determinados pelos grandes senhores (também sem opção por parte do trabalhador, se quer fazer com que seus descendentes sobrevivam).

Manter o trabalhador sob o tacão dos senhores vem sendo uma construção de séculos neste país, num arranjo muito bem traçado e entrelaçado que combina imposição da ignorância como forma natural de se viver (a famosa massa ignara) e da subserviência social, política e ideológica. A massa não pode pensar. A massa deve ser informada por mídias vinculadas diretamente aos grandes senhores.

Quando do interesse desses senhores, a massa tem que ser moldada como sendo cordial, pacífica. Em alguns momentos, essa mesma massa precisa ter estimulada sua intolerância para com a diversidade. Diversidade religiosa, diversidade racial, diversidade cultural, diversidade sexual... Para tentar manter seu status quo, a elite não hesita para produzir trevas e pregar violência, racismo, xenofobia... A ideia é romper o tecido social, de modo a dominar com mais facilidades.

Dois textos necessários a todo aquele que se entende como cidadão brasileiro, e a todo aquele que estuda ou pretende conhecer o atual momento dos embates políticos e o modo singular como se desenrola a história deste país são reproduzidos a seguir. Textos de brasileiros que abrilhantam.

Reputo-os como históricos e altamente elucidativos e provocadores de reflexões. Ou essa massa que não estão conseguindo manter na ignorância toma ciência do que acontece, ou essas mesmas massas serão novamente emplastradas numa mais profunda submissão aos desígnios dos grandes senhores, num retrocesso histórico assustador.

Será que se trata da aproximação do fim do calendário Maia? Estamos mesmo caminhando para o fim? Qual fim? Um fim poderia ser a real redenção das massas assumindo a direção dos seus destinos. Um outro poderia ser a derrota das massas ante o bombardeio midiático e idiotizante que vem sempre sofrendo de todos os pontos onde os grandes senhores podem atuar. Leiam e reflitam, pensando sobre muitos outros finais possíveis. Torço para que vença a justiça social em sua plenitude. Torço para que os ventos do retrocesso parem de soprar.

O golpe imaginário de Ayres Britto

Por Paulo Moreira Leite, publicado na revista Época, reproduzido de Com Texto Livre

Confesso que ainda estou chocado com o voto de Ayres Britto, ao condenar oito réus do mensalão, na quinta-feira.

O ministro disse:
“[O objetivo do esquema era] um projeto de poder quadrienalmente quadruplicado. Projeto de poder de continuísmo seco, raso. Golpe, portanto”
Denunciar golpes de Estado em curso é um dever de quem tem compromissos com a democracia.
Denunciar golpes de Estado imaginários é um recurso frequente quando se pretende promover uma ruptura institucional.

O caso mais recente envolveu Manoel Zelaya, o presidente de Honduras. Em 2009 ele foi arrancado da cama e, ainda de pijama, conduzido de avião para um país vizinho.

Acusava-se Zelaya de querer dar um golpe para mudar a Constituição e permanecer no poder. Uma denúncia tão fajuta que – graças ao Wikileaks – ficamos sabendo que até a embaixada dos EUA definiu a queda de Zelaya como golpe. Mais tarde, ao reavaliar o que mais convinha a seus interesses de potência,  a Casa Branca mudou de lado e encontrou argumentos para justificar a nova postura, fazendo a clássica conta de chegar para arrumar  fatos e os argumentos.

Em 31 de março de 64, tivemos um golpe de Estado de verdade, que jogou o país em 21 anos de ditadura.
O golpe foi preparado pela denúncia permanente de um golpe imaginário, que seria preparado por João Goulart para transformar o país numa “república sindicalista.” Basta reconstituir os passos da conspiração civil-militar para reconhecer: o toque de prontidão do golpismo consistia em denunciar  projetos anti democráticos de Jango.

Considerando antecedentes conhecidos, o voto de Ayres Britto é preocupante porque fora da realidade.
Vamos afirmar: não há e nunca houve um projeto de golpe no governo Lula. Nem de revolução. Nem de continuísmo chavista. Nem de alteração institucional que pudesse ampliar seus poderes de alguma maneira.
Lula poderia ter ido as ruas pedir o terceiro mandato. Não foi e não deixou que fossem. Voltou para São Bernardo mas, com uma história maior do que qualquer outro político brasileiro, não o deixam em paz. Essa é a verdade. Temos um ex grande demais para o papel. Isso porque o PT quer extrair dele o que puder de prestígio e popularidade. A oposição quer o contrário. Sabe que sua herança é um obstáculo imenso aos  planos de retorno ao poder.

Ouvido pelo site Consultor Jurídico, o professor Celso Bandeira de Mello, um dos principais advogados brasileiros, deu uma entrevista sobre o mensalão, ainda no começo do processo:
ConJur — Como o senhor vê o processo do mensalão?

Celso Antônio Bandeira de Mello − Para ser bem sincero, eu nem sei se o mensalão existe. Porque houve evidentemente um conluio da imprensa para tentar derrubar o presidente Lula na época. Portanto, é possível que o mensalão seja em parte uma criação da imprensa. Eu não estou dizendo que é, mas não posso excluir que não seja.

Bandeira de Mello é amigo e conselheiro de Lula. Foi ele quem indicou Ayres Britto para o Supremo. A nomeação de Brito – e de Joaquim Barbosa, de Cesar Pelluzzo – ocorreu na mesma época em que Marcos Valério e Delúbio Soares andavam pelo Brasil para, segundo o presidente do Supremo, arrumar dinheiro para o “continuísmo seco, raso.”

Os partidos políticos podem ter, legitimamente, projetos duradouros de poder. É inevitável, porque poucas ideias boas podem ser feitas em quatro anos.

Os tucanos de Sérgio Motta queriam ficar 25 anos. Ficaram oito. Lula e Dilma, somados, já garantiram uma permanência de 12.

Tanto num caso, como em outro, tivemos eleições livres, sob o mais amplo regime de liberdades de nossa história.

Para quem gosta de exemplos de fora, convém lembrar que até há pouco o padrão, na França, eram governos de 14 anos – em dois mandatos de sete. Nos Estados Unidos, Franklin Roosevelt foi eleito para quatro mandatos consecutivos, iniciando um período em que os democratas passaram 20 anos seguidos na Casa Branca. Os democratas de Bill Clinton poderiam ter ficado 12 anos. Mas a Suprema Corte, com maioria republicana, aproveitou uma denúncia de fraude na Flórida para dar posse a  George W. Bush,  decisão ruinosa que daria origem a uma tragédia de impacto internacional, como todos sabemos.

O ministro me desculpe mas eu acho que, para  falar do mensalão como parte de  projeto de “continuísmo seco, raso,” é preciso considerar o Brasil  uma grande aldeia de Gabriel Garcia Márquez. Em vez da quinta ou sexta economia do mundo,  jornais, emissoras de TV, bancos poderosos, um empresariado dinâmico, trabalhadores organizados e  100 milhões de eleitores, teríamos de coronéis bigodudos com panças imensas, latifúndios a perder de vista, cidadãos dependentes, morenas lindas e apaixonadas,  capangas de cartucheira.

No mundo de Garcia Marquez, não há democracia, nem conflito de ideias.  Não há desenvolvimento, apenas estagnação, tédio e miséria. Naquelas aldeias do interior remoto da Colômbia,  homens e mulheres famintos vivem às voltas de um poder único e autoritário. Esmolam favores, promoções, presentes, pois ninguém tem força, autonomia e muito menos coragem para resolver a própria vida.  Desde a infância, todos os cidadãos são ensinados a cortejar o poder, bajular. É seu modo de vida. Como recompensa, recebem esmolas.

No mensalão de Macondo, seria assim.

Será esta uma visão adequada do Brasil?

Em 1954, no processo que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, também se falou em golpe.
Com apoio de uma imprensa radicalizada, em campanhas moralistas e denuncias – muitas vezes sem prova – contra o governo, dizia-se que Vargas pretendia permanecer no posto, num golpe continuísta, com apoio do ”movimento de massas.”

Era por isso, dizia-se, que queria aumentar o salario mínimo em 100%. Embora o mínimo tivesse sido congelado desde 1946, por pressão conservadora sobre o governo Eurico Dutra, a proposta de reajuste era exibida como parte de um plano continuísta para agradar aos pobres – numa versão que parece ter lançado os fundamentos para as campanhas sistemáticas contra o Bolsa-Família, 50 anos depois.

Embora falasse em mercado interno, desenvolvimento industrial e até tivesse criado a Petrobrás, é claro que Vargas queria apenas, em  aliança com o argentino Juan Domingo Perón (o Hugo Chávez da época?), estabelecer uma comunhão sindicalista na América do Sul e transformar todo mundo em escravo do peleguismo, não é assim? E agora você, leitor, vai ficar surpreso. Um dos grandes conspiradores contra Getúlio Vargas, especialista em denunciar golpes imaginários, foi parar no Supremo. Chegou a presidente, teve direito a um livro luxuoso com uma antologia de suas sentenças.

Estou falando de Aliomar Baleeiro, jurista que entrou no tribunal em 1965, indicado por Castelo Branco, o primeiro presidente do ciclo militar, e aposentou-se em 1975, o ano em que o jornalista Vladimir Herzog foi morto sob tortura pelo porão da ditadura.

Baleeiro deixou bons momentos em sua passagem pelo Supremo. Defendeu várias vezes o retorno ao Estado de Direito.

Chegou a dar um voto a favor de frades dominicanos que faziam parte do círculo de Carlos Marighella, principal líder da luta armada no Brasil.

A ditadura queria condenar os frades. Baleeiro votou a favor deles.

Tudo isso é muito digno mas não vamos perder a o fio da história que nos ajuda a ter noção das coisas e aprender com elas.

Em várias oportunidades, o ministro que faria a defesa do Estado de Direito contribuiu para derrotá-lo.
O ministro chegou ao STF com uma longa folha de serviços anti democráticos.

Em 1954, ele era deputado da UDN, aquele partido que reunia a fina flor de um  conservadorismo bom de patrimônio e ruim de votos.

Um dos oradores mais empenhados no combate a  Getúlio Vargas , Baleeiro foi a tribuna da Câmara para pedir um “golpe preventivo”. ( Pode-se  conferir em “Era Vargas — Desenvolvimentismo, Economia e Sociedade,” página 411, UNESP editora.)

Os adversários de Vargas tentaram a via legal, o impeachment. Tiveram uma derrota clamorosa, como diziam os locutores esportivos de vinte anos atrás:  136 a 35.

Armou-se, então, uma conspiração militar. Alimentada pelo atentado contra Carlos Lacerda, que envolvia pessoas do círculo de Vargas, abriu-se uma pressão que acabaria emparedando o presidente, levado ao suicídio.

Baleeiro permaneceu na UDN e conspirou contra a campanha de JK, contra a posse de JK e  contra o governo JK.  Sempre com apoio nos jornais, foi um campeão de denúncias. Era aquilo que, mais uma vez com ajuda da mídia, muitos brasileiros pensavam que era o Demóstenes Torres – antes que a verdade do amigo Cachoeira viesse a tona.

Baleeiro estava lá, firme, no golpe que derrubou Jango para combater a subversão e a …corrupção.
Foi logo aproveitado pelo amigo Castelo Branco para integrar o STF. Já havia denuncia de tortura e de assassinatos naqueles anos. Mortos que não foram registrados, feridos que ficaram sem nome. Não foram apurados, apesar do caráter supremo das togas negras.

Entre 1971 e 1973, Baleeiro ocupava a presidência do STF. Nestes dois anos, o porão do regime militar matou 70 pessoas.

Nenhum caso foi investigado nem punido, como se sabe. Nem na época, quando as circunstâncias eram mais difíceis. Nem quarenta anos depois, quando pareciam mais fáceis.

Em 1973, José Dirceu, que pertenceu a mesma organização que Marighella, vivia clandestinamente no Brasil. Morou em Cuba mas retornou para seguir na luta contra o regime militar. Infiltrado no grupo, o inimigo atirou primeiro e todos morreram. Menos Dirceu. Os ossos de muitos levaram anos para serem identificados. Nunca soubemos quem deu a ordem.

Não se apontou, como no mensalão, para quem tinha o domínio do fato para a tortura, as execuções.
Um dos principais líderes do Congresso da UNE, entidade que o regime considerava ilegal, Dirceu foi preso em 1968 e saiu da prisão no ano seguinte. Não foi obra da Justiça, infelizmente, embora estivesse detido pela  tentativa de reorganizar uma entidade que desde os anos 30  era reconhecida pelos universitários como sua voz política. (Figurões da ditadura, como o pernambucano Marco Maciel, que depois seria vice presidente de FHC, Paulo Egydio Martins, governador de São Paulo no tempo de Geisel, tinham sido dirigentes da UNE, antes de Dirceu).

A Justiça era tão fraca , naquele período, que Dirceu só foi solto  como resultado do sequestro do embaixador Charles Elbrick, trocado por um grupo de presos políticos.  Mas imagine.

Foi preciso que um bando de militantes armados, em sua maioria garotos enlouquecidos com Che Guevara,  cometesse uma ação desse tipo para que  pessoas presas arbitrariamente, sem julgamento, pudessem recuperar a liberdade. Que país era aquele, não? Que Justiça, hein?

Preso no Congresso da UNE, também, Genoíno foi solto e ingressou na guerrilha do Araguaia.
Apanhado e torturado em 1972, Genoíno conseguiu esconder a verdadeira identidade durante dois meses. Estava em Brasília quando a polícia descobriu quem ele era. Foi levado de volta a região da guerrilha e torturado em praça pública, como exemplo.

Quinta-feira a noite, José Dirceu e José Genoíno foram condenados por 8 votos a 2 e 9 votos a 1.
Foi no final da sessão que Ayres Britto falou em “projeto de poder de continuísmo seco, raso. Golpe, portanto”



Divulguem a teoria política do Supremo

Por Wanderley Guilherme dos Santos, reproduzido de Conversa Afiada

Diante de um Legislativo pusilânime, Odoricos Paraguassú sem voto revelam em dialeto de péssimo gosto e falsa cultura a raiva com que se vingam, intérpretes dos que pensam como eles, das sucessivas derrotas democráticas e do sucesso inaugural dos governos enraizados nas populações pobres ou solidárias destes. Usando de dogmática impune, celebram a recém descoberta da integridade de notório negocista, confesso sequestrador de recursos destinados a seu partido, avaliam as coalizões eleitorais ou parlamentares como operações de Fernandinhos Beira-mar, assemelhadas às de outros traficantes e assassinos e suas quadrilhas.

Os quase quarenta milhões de brasileiros arrancados à miséria são, segundo estes analfabetos funcionais em doutrina democrática, filhos da podridão, rebentos do submundo contaminado pelo vírus da tolerância doutrinária e pela insolência de submeter interesses partidariamente sectários ao serviço maior do bem público. Bastardos igualmente os universitários do Pró-Uni, aqueles que pela primeira vez se beneficiaram com os serviços de saúde, as mulheres ora começando a ser abrigadas por instituições de governo para proteção eficaz, os desvalidos que passaram a receber, ademais do retórico manual de pescaria, o anzol, a vara e a isca. Excomungados os que conheceram luz elétrica pela primeira vez, os empregados e empregadas que aceitaram colocações dignas no mercado formal de trabalho, com carteira assinada e previdência social assegurada. Estigmatizados aqueles que ascenderam na escala de renda, comparsas na distribuição do butim resultante de políticas negociadas por famigerados proxenetas da pobreza.

Degradados, senão drogados, os vitimados pelas doenças, dependentes das drogas medicinais gratuitas distribuídas por bordéis dissimulados em farmácias populares. Pretexto para usurpação de poder como se eleições fossem, maldigam-se as centenas de conferências locais e regionais de que participaram milhões de brasileiros e de brasileiras para discussão da agenda pública por aqueles de cujos problemas juízes anencéfalos sequer conhecem a existência.

O Legislativo está seriamente ameaçado pelo ressentimento senil da aposentadoria alheia. Em óbvia transgressão de competências, decisões penais lunáticas estupram a lógica, abolem o universo da contingência e fabricam novelas de horror para justificar o abuso de impor formas de organização política, violando o que a Constituição assegura aos que sob ela vivem. Declaram criminosa a decisão constituinte que consagra a liberdade de estruturação partidária. Vingam-se da brilhante estratégia política de José Dirceu, seus companheiros de direção partidária e do presidente Lula da Silva, que rompeu o isolamento ideológico-messiânico do Partido dos Trabalhadores e encetou com sucesso a transformação do partido de aristocracias sindicais em foco de atração de todos os segmentos desafortunados do país.

Licitamente derrotados, os conservadores e reacionários encontraram no Supremo Tribunal Federal o aval da revanche. O intérprete, contudo, como é comum em instituições transtornadas, virou o avesso do avesso, experimentou o prazer de supliciar e detonou as barreiras da conveniência. Ou o Legislativo reage ou representará o papel que sempre coube aos judiciários durante ditaduras: acoelhar-se.

Imprensa independente, analistas, professores universitários e blogueiros: comuniquem-se com seus colegas e amigos no Brasil e no exterior, traduzam se necessário e divulguem o discurso do ministro-presidente Carlos Ayres de Britto sobre a política, presidencialismo, coalizões e tudo mais que se considerou autorizado a fazer. Divulguem. Divulguem. Se possível, imprimam e distribuam democráticamente. É a fama que merece.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Serra, Malafaia e Jabes Alencar dão partida a cruzada "cristã" homofóbica contra Haddad
(11out2012)


Serra: um pacto do além com o aquém. [um Termidor de Malafaias para SP]

Por Saul Leblon, na Carta Maior (destaques meus)

Os primeiros passos de Serra na largada do 2º turno em São Paulo ilustram o ponto a que está disposto chegar para reverter o prenúncio da derrota que nem o Datafolha dissimula mais.

O tucano reuniu-se nesta 3ª feira com um interlocutor cirurgicamente escolhido para reforçar a musculatura do vale tudo na disputa: o bispo radialista, Silas Malafaia, veio diretamente do Rio de Janeiro apresentar armas à campanha. Acompanhado do pastor Jabes Alencar, do Conselho de Pastores de São Paulo, teve um encontro fechado com Serra.

O pacto do além com o aquém foi festejado em manchete do caderno de política da 'Folha de SP'. Assim:
"Líder evangélico diz que vai 'arrebentar' candidato petista - Silas Malafaia afirma que Haddad apoia ativistas gay". 
O título em 3 linhas de 3 colunas, ladeado de um foto imensa de Serra (meia pág. em 3 colunas), empunhando uma criança adestrada em fazer o '45', inspira calafrios.

Deliberadamente ou não, o conjunto ilustra um conceito de harmonia que envolve arrebentar a tolerância, de um lado, para preservar a pureza, de outro. Concepções assemelhadas levaram o mundo a um holocausto eugênico de consequências conhecidas.

A hostilidade beligerante de Serra em relação a adversários - inclusive os do próprio partido - incorporou definitivamente uma extensão regressiva representada pela restauração do filtro religioso na política. Como recurso de caça ao voto popular, que escapa maciçamente ao programa do PSDB - liquefeito na desordem neoliberal -, é mais uma modernidade que devemos ao iluminismo dos intelectuais de Higienópolis.

O bispo Silas Malafaia foi importado do Rio de Janeiro exatamente com essa finalidade. Veio dizer aos fiéis de São Paulo em quem votar e a quem amaldiçoar. Os critérios escapam aos valores laicos da independência democrática em relação às convicções religiosas. Mas isso não importa à ética de vernissage de certa inteligência paulista. Faz tempo que em certos círculos incorporou-se a licença do vale-tudo para vencer o PT, a quem se acusa de sepultar os princípios originais de esquerda...

Serra aperfeiçoa, não inova na promoção do eclipse das consciências e dos valores laicos que sustentam a convivência compartilhada.

Na campanha presidencial de 2010, a água benta da sua candidatura foi o carimbo de 'aborteira' espetado contra Dilma Rousseff. A esposa do tucano, culta bailarina Mônica Serra, pregava nas ruas da Baixada Fluminense, como uma mascate da intolerância: 'Ela (Dilma) é a favor de matar as criancinhas'.

Não era uma voz no deserto. Recorde-se que Dom Bergonzini, um bispo de extrema direita, da zona sul de São Paulo, já falecido, encomendou então 20 milhões de panfletos com o mesmo calibre.

Os impressos falseavam a chancela da Igreja católica para atacar, caluniar e desencorajar o voto na candidata da esquerda nas eleições presidenciais.

Um lote do material foi descoberto na gráfica da irmã do coordenador de campanha de Serra.

A imprensa sem escrúpulos teve então, curiosamente, todo o escrúpulo, omitindo-se de perguntar: - De onde veio o dinheiro, Dom Bergonzini?

Tampouco se cogitou indagar se o bispo e os donos da gráfica tinham contato com outro personagem sombrio da campanha tucana, Paulo Preto - que o candidato da hipocrisia conservadora chamava de 'Paulo afro-descendente'.

Apontado como o caixa 2 da campanha, Paulo, fixemos assim, teria desviado R$ 4 milhões em doações para proveito próprio. Mas compartilhava segredos protegidos por recados ameaçadores: - 'Não se abandona um líder no meio do caminho'. A senha era enfática o suficiente para obrigar Serra a interromper a campanha e convocar os jornais, declarando-o um cidadão acima de qualquer suspeita.

A transformação do eleitor em rebanho, a manipulação do discernimento político pela mídia e o retorno das togas a uma simbiose desfrutável pelo estamento conservador, configuram hoje os requisito de uma sociedade capaz de dar a vitória a Serra neste 2º turno.

Não se trata de uma denúncia. São os ingredientes mobilizados pelo candidato tucano que arredonda assim a biografia com um toque de Tea Party tropical. O pacto da intolerância selado com o eloquente bispo Malafaia ilustra a travessia edificante de um quadro originalmente tido como um zangão 'desenvolvimentista' da colmeia neoliberal.

A intelectualidade iluminista que ainda apoia José Serra tem condições de enxergar essa marcha batida que empurra São Paulo para um Termidor de malafaias.

A intelectualidade iluminista tem, sobretudo, a co- responsabilidade nos desdobramentos dessa distopia obscurantista que a candidatura tucana enseja, agrega, patrocina e encoraja, na tentativa algo desesperada de evitar a derrota desenhada em São Paulo. A ver.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A infantilização do voto
(10out2012)


Onda conservadora "Pode deixar que eu cuido disso": a infantilização do voto

Por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, publicado no Le Monde Diplomatic e no sítio de Luís Nassif


A “despolitização” induz a maioria das pessoas a perceber as eleições como o único meio de fazer política. Essa contração foi acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem” na TV e no rádio. Lá chegando, incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo conservador, transforma tudo em entretenimento.


Processos de infantilização das campanhas eleitorais sempre ocorrem nas democracias de massa. No esforço para capturar os votos da maioria em sociedades em que o poder político e econômico é detido por uma minoria, algum tipo de manipulação é imprescindível. Referindo-se ao século XIX, quando surgiram as primeiras democracias eleitorais, Eric Hobsbawm observou as afinidades entre a era da democratização e a hipocrisia política.

Estudiosos sofisticados não apenas teorizaram como justificaram esse processo, considerando-o um componente positivo de qualquer democracia possível. Foi o caso de Joseph Schumpeter, em seu clássico Capitalismo, socialismo e democracia, publicado em 1942 e hoje mais influente do que nunca. Para esse autor austríaco exilado nos Estados Unidos, é teoricamente incorreto e politicamente arriscado levar a sério a etimologia de democracia (poder do povo). O povo jamais teve ou terá o poder, que sempre foi e será das elites. Nesse sentido, a democracia se define como um conjunto de procedimentos que asseguram a concorrência entre elites organizadas em empresas políticas, ou seja, partidos, que concorrem pela preferência do consumidor político, isto é, o eleitor. Este, como qualquer consumidor, não é um exemplo de racionalidade ao fazer sua escolha. Daí algumas condições para que a democracia prospere, como, por exemplo, um debate político que não coloque questões estruturais em pauta. E que o eleitor deixe o eleito em paz. A este, e não àquele, o mandato pertence.

Essa concepção dita procedimental da democracia, ao traçar uma forte analogia entre a política e o mercado (idealizando este último), contribui para legitimar a superficialização do debate político, o alijamento da maior parte da população de questões mais sérias e a forte presença dos profissionais em propaganda eleitoral. É provável que o fantasma de Schumpeter ronde as atuais eleições brasileiras, especialmente no “horário político” da TV e nas matérias publicadas pela grande imprensa. Até porque, como se trata de pleitos municipais, é mais fácil a disseminação da ideia de que basta um bom gerente para que os principais “problemas” estejam em boas mãos.

Não exageremos nas simplificações. Para além da manipulação – e para que esta funcione em maior ou menor grau –, existem fortes determinações estruturais. É o caso da construção altamente ideologizada de uma comunidade de indivíduos-cidadãos livres e iguais, inclusive quanto ao acesso à informação política, em sociedades marcadas por ferozes relações de exploração e dominação. Uma propaganda do TSE que apresenta o eleitor como “patrão” expressa, de modo enviesado e um tanto confuso, essa construção. Não ficaria mais próximo da vida como ela é apresentar a maioria dos eleitores como “não patrões”?

Essa maioria não patronal é o grande alvo do “horário político”. A ela se dirigem os candidatos travestidos de super-heróis, prometendo, a cada quatro anos, resolver os “problemas” de moradia, assistência médico-hospitalar, creche, esgoto, água tratada, emprego, habitação etc. Só não explicam a origem de seus superpoderes ungidos de espírito público e amor ao próximo, bem como por que, historicamente, tudo isso desaparece assim que se encerra a estação de caça aos votos.

Na vida real, os “patrões” não costumam rasgar dinheiro. Não gastam seu precioso tempo assistindo ao show dos horários eleitorais em que um promete mudar aeroportos ou erguer aerotrens; outro afirma com a maior seriedade que eliminará congestionamentos de trânsito aproximando locais de trabalho e de moradia (e vice-versa); um terceiro garante que nomeará um ministério do nível de ministros (grito socorro?) e que os serviços públicos funcionarão porque ele aparecerá onde não o esperam (Jânio vem aí?).

Nenhum se refere a um aspecto importantíssimo para a aplicação de políticas, inclusive no plano municipal: nessa situação de crise capitalista que se aprofunda e de forte comprometimento das contas nacionais com o pagamento da dívida pública a boa parte dos grandes “patrões” (bancos, fundos de pensão, grandes empresas industriais brasileiras e transnacionais), é quase nula a capacidade do Estado, em seus distintos níveis, de colocar em prática políticas sérias, especialmente sociais. Poupa-se o eleitor desse assunto enfadonho, até porque – reza o saudável senso comum – crise capitalista não é assunto de prefeito ou vereador. Melhor destacar que é amigo da presidenta e do governador; que é administrador experiente e competente; que, assim como foi o maior ministro de tal área, será o maior prefeito. E que, ao contrário do adversário, não é amigo do Maluf.

É claro que existem diferenças políticas entre as candidaturas relevantes, aí se incluindo partidos cuja competitividade eleitoral é ínfima. E, mesmo em seus melhores momentos, as disputas eleitorais filtram e refratam os principais interesses das forças sociais. Mas um importante aspecto comum em uma cidade altamente politizada como São Paulo consiste no peso extraordinário que adquire a interpelação do eleitorado como essencialmente passivo. Lutas populares, nem pensar. Basta o voto (claro que em mim!) para mudar o destino da maioria daqueles a quem a propaganda eleitoral se dirige. Um grande autor, em sua fase juvenil, fez uma crítica mordaz desse duplo mundo, o “celestial”, onde, apagadas as diferenças, todos viram “cidadãos”; e o “terreno”, onde o homem é o lobo do homem. Nas grandes metrópoles brasileiras, essa dupla vida nos incomoda quando deparamos com homens e mulheres pobres, expostos ao sol inclemente deste inverno surreal, segurando cartazes de candidatos com os quais não têm nenhuma afinidade político-eleitoral, até porque isso é o que menos importa. Para quem paga, é tirar partido de mão de obra sobrante e, portanto, barata. Para quem segura o rojão, também tanto faz ser placa de empreendimento imobiliário ou de qualquer “político”. Melhor do que “compro ouro”. Para todos nós que passamos de carro, por que se indignar? No melhor dos casos, cumpriremos nosso dever cívico, depositando o voto na urna, e esperamos – quem sabe até cobrando – que as “autoridades” resolvam a situação dessa gente com as quais (situação e gente) nada temos a ver.

Exatamente devido aos impactos que produz no sentido de desorganizar a ação coletiva e autônoma dos dominados – inclusive no que se refere à produção e circulação de informações –, esse processo de “despolitização” não é politicamente neutro. Ao contrário, contribui, em São Paulo ou em São Luís, para a reprodução de um dos padrões de dominação e exploração mais predatórios do planeta.

Também cabe evitar a ideia igualmente simplista de que o esforço de manipulação opera sobre um terreno vazio e passivo (um espécie de folha de papel em branco) e sempre obtém os mesmos resultados. No fundamental, o que está em jogo é, em cada conjuntura, a maior ou menor capacidade de intervenção popular na vida política.

Essa capacidade sofreu drástica redução nos últimos anos. Partidos antes combativos passaram por fortes mutações, ao longo das quais obliteraram seus espaços de participação (inclusive debates internos). Políticas sociais importantes para, em caráter emergencial, melhorar as condições de vida de populações que estavam em extrema miséria tampouco ampliaram aquela capacidade. Ao contrário, reforçaram a percepção de que o governante é um pai (ou uma mãe), com especial carinho para com os mais desprotegidos. E, como vimos, no plano nacional, sem tempo para negociar com a totalidade dos professores das universidades federais envolvidos numa ação coletiva (uma greve) durante mais de cem dias; e, no estadual/municipal, o bárbaro massacre dos moradores do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), também organizados na luta política por direitos constitucionais elementares. Enquanto isso, o especulador não tem do que se queixar, e um candidato “do bem” se vangloria de, quando secretário estadual da Educação, jamais ter deparado com uma greve de professores.

Sorte dos trabalhadores e trabalhadoras que não se metem em confusão, até porque esse processo de despolitização segue pari passucom o de judicialização da vida política. Mas por que nos preocuparmos? Afinal, a essência da maioria dos candidatos pode se resumir no refrão de um deles: passa o tempo todo pensando nos pobres.

Com essa drástica redução da capacidade de ação popular coletiva, não é mais necessário, como foi em 1989, que um importante dirigente industrial, Mário Amato, alerte que, caso determinado candidato vencesse, 800 mil empresários abandonariam o Brasil; ou, no pleito seguinte, outro peso pesado dos industriais advertisse que a eleição do mesmo candidato seria o equivalente a uma bomba de hidrogênio despencar sobre este país abençoado por Deus. Na campanha eleitoral de 2002, o marqueteiro-mor do mesmo candidato, ao coordenar importantes figuras políticas na feitura de uma propaganda televisiva, disse para todos erguerem a mão em forma de L. “A mão direita ou a esquerda?”, perguntou alguém. “Como quiser”, respondeu o pragmático guru, “quem for de direita, com a direita; quem for de esquerda, com a esquerda.” Não por mera coincidência, assinou-se a “Carta aos brasileiros”; apesar de algumas rusgas passageiras, houve forte apoio empresarial; e o partido concluiu sua passagem para a idade da razão.

Os impactos “despolitizadores” sobre os processos induzem a grande maioria das classes populares a perceber as eleições como o único meio legítimo de fazer política. Essa contração foi acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem” principalmente na televisão e no rádio (as chamadas redes sociais ainda engatinham nesse processo). Lá chegando, incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo abertamente conservador, transforma tudo em entretenimento. Em outros termos, o centro da atividade eleitoral mais visível se transfere para meios de comunicação tremendamente oligopolizados e que reproduzem, na imensa maioria das transmissões, (novelas, noticiários, propagandas) processos de infantilização. Lutas pelo aprofundamento da participação política no Brasil requerem democratizar e diversificar os meios de comunicação.

Quando Schumpeter escreveu seu célebre livro sobre democracia, o desfecho da Segunda Guerra Mundial, fortemente articulada a uma crise do capitalismo, ainda estava incerto e restavam poucas democracias liberais no planeta. Em um livro schumpeteriano bem mais simplista, A terceira onda, Samuel Huntington se congratulava, em 1993, pelo espraiamento desse regime por grande parte do planeta. Todavia, no atual contexto de profunda crise capitalista, tendem a aumentar os desencontros entre esse regime e a participação popular. Se Schumpeter e tantos outros negam a possibilidade do poder do povo, diversos estudiosos, como Slavoj Žižek,ao abordar uma questão bem mais específica, recorrem a uma expressão cada vez mais em voga para nos referirmos a essa reviravolta sinistra: a democracia se volta contra os povos.

Diante dos riscos de que o modelo schumpeteriano de democracia chegue ao seu esgotamento no bojo da atual crise, é urgente inventar novas e profundas formas de efetiva participação popular na política.

Resta saber se isso é possível sem reinventar a sociedade.


Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida é professor do Departamento de Política da PUC-SP