Todo esse tempo me veio vividamente agora quando por uma dessas buscas pela internet encontrei vídeos de um coro da ópera Nabuccodonosor, o Va pensiero. Assim que as aulas do primeiro semestre começaram, minha sala foi visitada por um pessoal do Coral da UFRRJ, convidando os calouros para nele ingressarem. Venci minha timidez e caipirice interiorana e lá fui eu, na quinta-feira à noite, para ensaiar no coral. Daí, foram seis anos de participação, sendo quatro como aluno e dois como professor daquela universidade. Eu já havia cantado em períodos pequenos no Coral de Bebedouro, com o Maestro Pedro Pellegrino, de saudosa memória, mas eu era um menino e o coral era de adultos, o que fazia com que eu me sentisse bastante deslocado e inútil para o grupo.
No Coral da UFRRJ, regido pelo Maestro Nelson Nilo Hack, com o acompanhamento de Leopoldo Touza ao piano, aprendi, já adulto, uma enormidade sobre música, história e vida. O coral é um espaço privilegiado da diversidade e do aprendizado de convivência com as diferenças, unindo-as para consoarem, para se harmonizarem e produzirem um som único, de conjunto.
O Va pensiero foi uma das primeiras músicas que ali ensaiei e cantei. Língua estrangeira, partitura em mãos com todos aqueles signos da escrita musical que eu buscava decodificar na forma de sons. O Maestro fazia um trabalho fenomenal ao apresentar essas obras contextualizando-as, traduzindo-as e buscando nosso entendimento do seu significado para colocarmos nas vozes e nas nossas expressões aquilo que entendíamos que correspondia aos textos e músicas que apresentávamos.
Fizemos naqueles anos diversos coros de grandes obras da história da música ocidental, e esse contato levou-me a querer conhecer mais de músicas, o que me levou a, hoje, poder apreciar um leque bastante ampliado e diversificado de gêneros musicais. Sou grato à sincronicidade de eventos que me levou a trilhar esse caminho. Se o pessoal, juntamente com o Maestro, não tivesse ido à minha sala de aula, muito provavelmente eu não teria o impulso de ir até o coral, dado, como já mencionei, a minha caipirice, uma timidez acachapante à época. Enfrentar palcos e um grupo multifacetado como aquele foram ingredientes importantes para que eu pudesse sobrepujar essa timidez. Fui monitor por dois anos e acabei me tornando um professor, encarando cotidianamente uma plateia geralmente bastante exigente. É certo que o coral tenha sido um dos catalizadores para que se desse esse desdobramento.
No meio musical, ao qual permaneci vinculado ainda por muitos anos, participando de corais e de grupos vocais aqui no Mato Grosso, pude conhecer grandes nomes da cena musical brasileira, bem como pesquisadores da educação musical. Fiz cursos, participei de oficinas e de painéis de regentes corais, estive a pouco de me tornar um regente coral de fato (por sorte, o mundo ficou livre dessa possibilidade pois eu me considerava, e era, um regente bem fraquinho), participei de concertos nas mais importantes cidades do Brasil e em algumas poucas no exterior. Mais importante do que tudo isso: fiz amizades muito especiais com pessoas dos mais variados matizes culturais, as quais acrescentaram e acrescentam muito à minha vida e enriquecem minhas memórias.
Os rumos que minha vida tomou foram sempre muito diferentes daquilo que eu planejava, daquilo que eu pretendia que fosse. Sinto que a música, e todo o seu entorno, tenha me dado um pontapé que me tirou do rumo a que me propunha quando jovem. E quando parei de "sofrer" por causa dos planos não realizados percebi que a vida me mostrava um trajeto muito mais rico e significativo do que o que qualquer dos meus planos poderia me trazer. Compreendi que somente planejamos com base no vivido e, muitas vezes, no que o meio social nos cobra como sendo o caminho ideal. Assim, jogamos para o futuro uma mera ampliação daquilo que conhecemos e do que somos capazes de entender nos anseios de nosso meio social. Ou seja, um futuro limitado ao passado ou pela nossa compreensão fragmentária de concepções alheias. Quando somos empurrados para o novo, para o inesperado, há uma incômoda sensação de desequilíbrio, de perda de controle. Isso, até percebermos que viver é, e deve ser, estar em constante desequilíbrio. Para que um pé se desloque para a frente, precisamos desequilibrar nosso corpo para a frente, e depois de novo, para que o outro pé se desloque, e assim sucessivamente. O equilíbrio de fato somente acontece quando nossa energia para de circular de um lado para outro em nosso corpo, em nossas células. É a morte!
Mas chega, por agora. Segue o vídeo que me despertou essas reflexões. Quem sabe começo a relatar mais de minhas vivências. Minha memória é voltada para pessoas que influenciaram meus caminhos, às quais sou grato por tudo que me propiciaram. Agradeço de coração inclusive a pessoas que eventualmente não gostaram ou não gostam de mim, pois elas foram e são balizas importantes para o meu caminhar.
Obs.: A imagem no vídeo é de muito boa qualidade, bastante diferente do que possa estar aparecendo aqui.
Coral do Metropolitan Opera House de Nova Iorque, gravado em 2002, coro dos escravos "Va pensiero", da ópera Nabuccodonosor, de Giuseppe Verdi.
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