O mundo não é o mesmo. A América, menos ainda
Por Fernando Brito | Tijolaço
Aprendemos na escola que a Doutrina Monroe, embora nascida como uma tese de defesa da soberania das nações do continente americano frente às potências européias – a América para os americanos – foi reescrita, na prática, como a afirmação dos interesses – ou de um direito “natural” de comando - dos Estados Unidos em toda a região, a América para os norte-americanos.
Mas, depois de quase dois séculos de hegemonia continental e quase um de hegemonia mundial, o império americano reduziu-se a uma caricatura, embora perigosa.
No resto do mundo, sobrevive em razão de seu poderio bélico – e bélico nuclear.
Aqui, na América, nem isso, pela falta de tensões militares e pela ascensão de governos de esquerda nos países mais importantes da América Latina, o argumento da “democracia” esbarra no fato de que estes governos são e foram livremente eleitos.
Embora possam, ainda, demonizar um Chávez ou Evo Morales, ou um Rafael Correa, não lhes é possível fazer o mesmo quando uma Cristina Kirchner ou uma Dilma Rousseff, partilham as posições de uma América Latina onde a soberania nacional seja a regra básica de convívio.
Exceto por uma elite rançosa e raivosa, ninguém lhe dá eco para isso, e mesmo essa hoje pratica de forma menos aberta a americanofilia.
Os EUA pagam o preço de décadas – ou já séculos - de intervencionismo e desprezo pelos povos latinoamericanos, os quais no início do século 19 tomavam a revolução americana e seus ideais como paradigmas de seu sentido libertário.
Exceto por Franklin Roosevelt e depois Jimmy Carter, com sua política de direitos humanos incomodando nossas ditaduras, é difícil para a memória encontrar um presidente americano que nos olhasse com um mínimo de dignidade.
Parecia que lhes éramos tão distantes quanto a África e até mais do que o Oriente e a Ásia.
Jamais se viram como líderes de um bloco continental, capaz de amplificar seu peso político no mundo e, em contrapartida, ser o facilitador do avanço social e econômico das nações latinoamericanas.
Só a esquerda, ao longo do século XX, viu a América Latina como um conjunto de nações fadado a unir-se em um projeto comum de desenvolvimento. A direita, em nossos países, sempre esteve prisioneira de sua própria visão mesquinha de privilégios para minorias: as oligarquias e elites medíocres, que só podiam imaginar seu papel como o de gerentes de entrepostos coloniais, a recolher migalhas do saque de nossas riquezas.
Sendo assim, foram parceiras e cúmplices dos Estados Unidos: davam-lhe o botim, em troca recebiam a “proteção” política – e por vezes militar – contra as “ameaças internas” partidas dos movimentos libertários e nacionalistas que inevitavelmente a elas se opunha. Desestabilizações, financiamentos políticos espúrios e, volta e meia, a ação militar direta – da assessoria em repressão e tortura aos “marines” – foram a pauta política mais constante nas relações políticas.
Mas estes grupos perderam poder por toda a América Latina e, há uma década já , ascenderam governos em maior ou menor grau compreometidos com projetos nacionais de desenvolvimento e com uma visão integradora da América Latina.
E os EUA, cegos, não sabem vê-los senão como “antiamericanos”, porque nos tratam menos como um enclave, onde qualquer interesse empresarial norteamericano é mais importante que uma visão estratégica de nossa convivência.
É por isso que Barack Obama não é capaz de compreender, profundamente, o que lhe disse Dilma, sábado, na Cúpula das Américas:
- Na América Latina há um espaço imenso para uma relação de sócios, mas sócios entre iguais, entre o país mais desenvolvido da região, que são os Estados Unidos, e os países latino-americanos.
A resposta do presidente americano ilumina esta cegueira, ao dizer que parece estarmos, aqui, “presos numa bolha do tempo nos anos 50, com yankees go home. ou seja, ” a controvérsias que, às vezes, remontam antes do meu (dele) nascimento”.
Quem está preso a isso são, sem sombra de dúvida, os Estados Unidos. Manter o anacrônico bloqueio a Cuba, espalhar – a pretexto do combate ao narcotráfico – bases militares na América Central e na do Sul, silenciar contra o controle colonial inglês sobre as Malvinas – um berço esplêndido para a exdrúxula 4ª Frota, morta com a 2ª Guerra Mundial e que os EUA sonham em recriar – não seriam, todas elas, atitudes de uma política intervencionista como a que ele diz ser algo dos anos 50?
Se são incapazes de desfazer aquilo que fez gerações gritarem “yankees go home”, como esperar que isso desapareça?
Os Estados Unidos não precisam de nada, diante de nós, senão de inteligência. E de uma atitude em que o mais forte não é ameaça, mas proteção. Mas se bloqueiam e mantém um enclave territorial em Cuba – a terrível prisão de Guantánamo – , se preferem apoiar a Índia que ao Brasil no Conselho de Segurança da ONU, se sustentam a Inglaterra como detentora de ilhas a 13 mil quilômetros de seu território e a apenas 500 km das costas argentinas,o que podem esperar dos latinoamericanos?
As mudanças, quando não se lhes abrem as portas corajosamente, ainda assim penetram na vida das nações e em seu relacionamento. A América Latina já não é a mesma, a que suplicava esmolas; os EUA também não são e se corroem numa crise econômica que só não é mais perigosa porque sua perda de legitimidade política é ainda maior, e imobiliza seu poderio bélico.
Nossas relações são e serão diferentes, inevitavelmente.
Os Estados Unidos, que poderiam ser os líderes deste processo, preferem permanecer “presos numa bolha do tempo nos anos 50″.
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