Por Marcelo Semer, em seu blog
É o tipo de sociedade na qual pretendemos nos transformar que está em jogo nessa disputa entre estado social e estado policial
O presidente do Supremo Tribunal Federal convoca reunião com a presença da imprensa para repreender associações de magistrados pela aprovação de PEC que cria novos tribunais federais.
O Ministério Público comemora o dia nacional de combate à corrupção com operações de prisões que são filmadas e exibidas no telejornal da hora do jantar.
O governador do Estado de São Paulo aproveita um crime de grande repercussão atribuído a adolescente na Capital, para propor imediatamente o aumento generalizado de punição aos jovens infratores.
O que os episódios têm em comum é a ocupação preferencial do palco da mídia no exercício dos poderes constituídos.
A palavra mágica que abre as portas para esse livre trânsito é ‘impunidade’.
Ser “contra a impunidade” é o primeiro passo para ter acesso à cadeia nacional -ainda que nossa população carcerária já seja a quarta maior do planeta.
Joaquim Barbosa sabe o efeito positivo da crítica aos juízes –recentemente chamou os magistrados brasileiros de “pró-impunidade”, reverberando o sucesso da ex-corregedora geral Eliana Calmon, com seu estandarte dos “bandidos de toga”.
O Ministério Público mantém há tempos uma relação de forte imbricação com a imprensa –hoje parceira na luta contra o que ambos denominam “PEC da Impunidade”.
Promotores e procuradores têm todo o direito de disputar a legitimidade da realização de investigações criminais –questão que ainda é controversa nos tribunais.
Mas o trato maniqueísta da campanha fornece a ela um ar de ‘salvação da pátria’, como se as demais instituições, complementando Barbosa, fossem todas “pro-impunidade”.
Um governador de Estado também tem o direito de fazer propostas de aumento da pena, que quase sempre repercutem positivamente. A depender dos eleitores, aliás, já teríamos baixado a maioridade para 12 anos ou até instituído a pena de morte.
Talvez seja um pouco mais difícil explicar porque quando os índices de criminalidade baixam, a vitória deve ser creditada à administração, mas quando sobem o problema é da lei.
Ou esclarecer porque a punição dos maiores pelos mesmos crimes não tem ajudado em nada para evitá-los –como bem o demonstra o crescimento do latrocínio no Estado, já punido com uma das mais altas sanções do Código.
Mas a verdade é que a ideia de recrudescimento do rigor penal e o prestígio das políticas repressivas e mesmo dos representantes da acusação está longe de ser uma modernidade tupiniquim.
O neopunitivismo, fortemente estimulado pela ‘criminologia da mídia’, nas definições de Raul Zaffaroni, está varrendo o planeta, a começar pelos Estados Unidos.
Por lá, a hipercriminalização aumentou sensivelmente o poder dos promotores, instituiu a governança através do crime (na feliz expressão de Jonathan Simon), e já conduziu ao encarceramento de dois milhões de cidadãos –sendo que os negros preenchem, proporcionalmente, sete vez mais vagas das penitenciárias.
A imprensa que, de maneira quase consensual, se acostumou a criticar dia após dia a lenta, custosa e ineficiente máquina pública, tece loas aos administradores que representam o engrandecimento do estado policial –afinal, o novo liberalismo projeta estados que sejam mínimos no social e máximos no direito penal.
A bem da verdade é aí que reside a superestrutura por trás da discussão que, só na aparência, diz respeito ao combate do crime.
Enquanto a esquerda vem sendo repetidamente acusada de populismo ao estimular processos de transferência de renda, os conservadores cultuam o seu próprio populismo com promessas ilimitadas de segurança através de mais e mais punição.
É o tipo de sociedade na qual pretendemos nos transformar que está em jogo.
A contradição entre o estado policial e o estado social se explicita cada vez mais como a grande disputa da política atual.
O insucesso do neoliberalismo na Europa, que vem se mostrando uma alternativa mais sofrida e cruel ao desmanche do estado do bem-estar, e a resistência latino-americana em aceitar o mesmo modelo, mostra que, ao contrário do que se apregoava, a história ainda está muito longe do fim.
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