Chávez, intelectualismo vendido e falsos dogmas democráticos
Por
Miguel do Rosário, no blog
O Cafezinho (os destaques sublinhados são meus)
Tentava falar com meu amigo
Theofilo Rodrigues sobre o coquetel que estamos organizando
nesta quinta-feira em nome de nossa humilde e ainda informal organização blogueira no estado do Rio (e para o qual todos os leitores estão convidados), quando ele me cortou:
Chávez acaba de morrer! Corri para a televisão para confirmar a informação. Mas logo renunciei ao desejo de assistir a qualquer coisa sobre o tema. Só punha os olhos na tv, quando passava pela sala, para ver cenas documentais, e ainda sim esforçando-me em fechar os ouvidos a qualquer comentário dos âncoras. Mesmo assim, ouvi algumas coisas, não necessariamente equivocadas.
As multidões nas ruas de Caracas forçaram um respeito inicial na Globonews. Que evidentemente não duraria muito, taí meu cuidado para não contaminar os ouvidos. Hoje, já refeitos do susto, inchados de pressentimentos eufóricos, veremos os grandes grupos de mídia entoando um coro único, ou antes um grito, simultâneo e desafinado, de alívio, e ainda assim cheio de um rancor mal contido, ódio ideológico e, sobretudo, incompreensão histórica.
Daí que hoje eu decidi,
em nome da minha saúde mental, fazer uma anti-análise de mídia. Não quero ler editoriais, colunas, artigos de nenhuma espécie. Depois os lerei, todos, mais tarde, como tenho feito nos últimos anos, com uma atenção nervosa, irritada, entrecortada por risadas de desprezo e crises de náusea.
Mas hoje eu ansiava por um pouco de pureza. Não gostaria de escrever com irritação, não dessa vez, não sobre este assunto.
No entanto, tinha que ler alguma coisa para me inspirar. Pensar a história, a política, a morte, ou qualquer coisa, sem uma referência, é para mim como navegar sem bússola, sem estrelas. Então lembrei de uma primorosa conferência de Thomas Carlyle, transposta em livro, sobre os heróis políticos, que eu já usara, anos atrás, para escrever um post sobre Lula. Reli calmamente o capítulo, sublinhei algumas frases, meditei, e sinto-me agora um pouco mais seguro para comentar a morte de Hugo Chávez, um acontecimento que naturalmente provoca reverberações trágicas, transcendentais, políticas, até mesmo metafísicas, em toda a imensa América morena (aí incluindo os 30 ou 40 milhões de hispanos que vivem no Norte).
Não preciso ler os jornais porque já sei o que vão falar. Há anos que acompanho a evolução da guerra antichavista na imprensa. Durante a crise que levou ao golpe de 2002 na Venezuela, eu acompanhei, por vários meses, a imprensa local, lendo diariamente editoriais do Universal, do El Tiempo, e até de um site de análises políticas chamado Analisis.com. Todos antichavistas radicais. Era muito impressionante o grau de sofisticação daquele jornalismo político. Ou pelo menos foi o que me pareceu à época. Editoriais repletos de citações de grandes filósofos, escritos às vezes com alguma virtuose literária, ofereciam um espetáculo todavia deprimente de incompreensão social, radicalismo conservador, racismo e toda sorte de preconceitos antidemocráticos. Para mim, foi uma verdadeira aula de como
o intelectualismo se vende facilmente ao poder da mídia e do dinheiro, e como, neste quesito, os governos são frágeis. Não foi à tôa que Vargas se matou e Jango aceitou tão docilmente um golpe de Estado. Não foi à tôa que o socialismo real, para ganhar força e se estabilizar, teve que vender parte de sua alma (e em seguida, sua alma inteira), em troca de uma vitória covarde, brutal – mas necessária do ponto-de-vista político, histórico e militar – sobre a opinião livre. Anos mais tarde, quando o demônio cobrou sua dívida, o socialismo começou a ruir. O capitalismo agora espera, morbidamente, o momento em que a China quitará seu débito com a liberdade, cujo pagamento o Partido Comunista conseguiu adiar, com muita astúcia, comprando títulos do Tesouro americano, de um lado, e oferecendo produtos tecnológicos a baixo custo para sua classe média, de outro.
Entretanto, suspeito que não exista alma mais corrupta, vaidosa e tola do que a de um intelectual. Quando um escapa e ganha independência, em geral o faz em virtude de graves desordens, mentais ou físicas. O capital contrata os fortes e alija os fracos, doentes ou loucos; e mesmo assim, nem tanto. Há tempos que o mercado percebeu o potencial de muitos que antes o mundo considerava loucos.
Outro fator que pode salvar o intelectual é seu instinto, suas vísceras, seu coração, ou mesmo seu demônio ou anjo interior, seja lá do que quiserem chamar, mas que compõe o seu lado não-intelectual. Ou seja, o que pode salvar um intelectual é o que possui, em si, de não-intelectual.
Fiz essas digressões porque, para analisar o fenômeno Chávez com alguma criatividade, evitando tropeçar em clichês ideológicos, é preciso logicamente usar ferramentas intelectuais, sociológicas, mas ao mesmo tempo se afastar radicalmente de qualquer impostura, de qualquer pose. O que é quase impossível. Mas vamos tentar.