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Geólogo e professor aposentado, trabalho este espaço como se participasse da confecção de um imenso tapete persa. Cada blogueiro e cada sitiante vai fazendo o seu pedaço. A minha parte vai contando de mim e de como vejo as coisas. Quando me afasto para ver em perspectiva, aprendo mais de mim, com todas as partes juntas. Cada detalhe é parte de um todo que se reconstitui e se metamorfoseia a cada momento do fazer. Ver, rever, refletir, fazer, pensar, mudar, fazer diferente... Não necessariamente melhor, mas diferente, para refazer e rever e refletir e... Ninguém sabe para onde isso leva, mas sei que não estou parado e que não tenho medo de colaborar com umas quadrículas na tecedura desse multifacetado tapete de incontáveis parceiros tapeceiros mundo afora.

sábado, 18 de junho de 2011

Política de fazer contratos de gestão é uma forma eufêmica de apagar o público (18jun2011)

Matéria intitulada Que modelo de "inclusão social" nós vamos ter com essas escolas?, publicada no sítio da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV - Fiocruz) em 27 de abril de 2011, consiste de uma entrevista com o professor e pesquisador da Faculdade de Educação da UFRJ, Dr. Roberto Leher.

Roberto Leher, ex-presidente do ANDES - Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, faz análise bastante crítica à política educacional do governo no que tange tanto ao ensino técnico quanto ao próprio ensino superior, principalmente na enorme transferência de recursos públicos para instituições privadas de ensino que buscam o lucro, não investindo em qualidade de equipamentos ou de pessoal docente.

A aposta e o estímulo estão voltados para cursos minimalistas, segundo Leher, cursos pós-secundários para dar "formação superior" de baixa qualidade, reservando para os estudantes neles formados ocupar vagas de trabalhos simples.

Dividi praticamente todo o texto em uma frase por parágrafo. Há muita informação em cada resposta, e o "espalhamento" do texto explicita melhor a densidade das afirmações feitas pelo entrevistado.


Foi lançado ontem, 28 de abril, pela presidente Dilma Roussef e pelo Ministro da Educação, Fernando Haddad, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), que deverá tramitar em regime de urgência no congresso nacional.

Nesta entrevista, realizada antes do lançamento oficial do Programa, Roberto Leher, professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisa algumas das estratégias que se assemelham aos caminhos seguidos na educação superior — em especial, o financiamento de vagas de educação profissional no setor privado por meio de projetos no formato do Fies (Financiamento Estudantil) e do Prouni (Programa Universidade para Todos).


Qual a relevância da opção pelo financiamento de vagas em instituições privadas numa estratégia de fortalecimento da educação profissional como o Pronatec?

Esse é um elemento central porque indica uma tendência geral de política educacional que está em curso, assentada num modelo de parcerias público-privadas.

O que nós temos até agora de informação, de fato, as ferramentas para viabilizar o Pronatec seriam o Fies e o Prouni.

É importante destacar que O Fies, que é um programa de bolsa, é extremamente oneroso para o Estado porque, embora seja empréstimo, é subsidiado a juros de 3,4% ao ano, quando a taxa selic básica de juros é de 11,5%.

A diferença de 11,5% para 3,4% é custeada pelo Estado.

Esse gasto, hoje, já ultrapassa, seguramente, R$ 500 milhões por ano e, com a expansão agora para as escolas técnicas, nós podemos ter uma projeção de que aumentaria até de forma exponencial.

Temos hoje no país uma grande rede de escolas técnicas privadas.

É importante destacar que a inclusão das escolas técnicas no Fies e também no Prouni era uma reivindicação do PMDB.

Se nós analisarmos o programa de governo apresentado pelo PMDB à Dilma Roussef quando eles fizeram a coalizão, vê-se que o partido reivindicava a inclusão das instituições de ensino médio privadas no Prouni.

Concretamente, isso significa uma enorme transferência de recursos públicos para uma rede privada que tem propósitos de formação que são particularistas.

Não casualmente, em todas as entrevistas que nós pudemos acompanhar sobre o Pronatec encontramos a afirmação de que a base estrutural desse programa será uma articulação do sistema S com os ifets [Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia].

Como nós sabemos, o sistema S sobrevive com recursos públicos indiretos, uma contribuição compulsória que é repassada para os consumidores e, portanto, pode ser entendida como recursos pagos pela sociedade.

Ainda assim, nós sabemos que, aproximadamente 50% dos cursos do Senai, por exemplo, são pagos — e muito bem pagos, diga-se de passagem.

Com o Pronatec, a ‘gratuidade’ (leia-se subsídio público), vai ampliar o percentual de vagas ditas gratuitas no sistema S.

Com isso, nós vamos ter, além dessas contribuições que já estão estabelecidas, um novo afluxo de recursos públicos no sistema S por meio do Fies e do Prouni.

No caso do Prouni, isso se dá por meio de isenções tributárias; no caso do Fies, por meio de juros subsidiados para compra da mercadoria educação.


O MEC tem se dedicado a tentar ampliar o número de vagas gratuitas do sistema S e tudo indica que o Pronatec tratará disso também. Essas coisas estão interligadas?

Claro. Eles estão chamando de ‘gratuitas’ as vagas que o Estado compraria do sistema S. O Estado, ao invés de fortalecer sua rede pública, compra vagas no setor privado, para disponibilizá-las como se fossem públicas.

Essa é uma lógica de política. É preciso também refletir sobre a natureza da formação.

Tanto o sistema S quanto o projeto desejado para os Ifets resultam atualmente de acordos feitos pelo governo brasileiro com a Usaid [United States Agency for International Development] — e essa não é uma suposição porque há documentos que comprovam.

Isso não quer dizer que seja o projeto praticado pelos Ifets, porque há muitas contradições e lutas dentro dessas instituições sobre a natureza da formação.

Mas, já desde 2006, o governo brasileiro procurou a Usaid para assessorar na expansão dos Ifets.

E o que a Usaid está propondo para o Ifets é um modelo estadunidense dos chamados community colleges, que são aquelas instituições pós-secundárias estadunidenses que ofertam cursos de curta duração e bastante pragmáticos, orientados para as demandas específicas do mercado de trabalho.

Isso resulta de uma política que vem sendo construída em comum acordo com a Usaid e que, portanto, agora se estrutura como uma política geral para a educação tecnológica brasileira.

Parece que é um programa extremamente preocupante no sentido de que vivemos um retrocesso brutal em relação àquilo que nós tínhamos de bom dentro das escolas técnicas federais, que foi toda a reflexão de educação politécnica feita a partir dos anos 1980.

Isso significa dizer que a matriz conceitual do decreto 2208/97, feito por [Fernando Henrique] Cardoso, que promove a desvinculação entre a educação profissional e a educação propedêutica — modelo esse que ficou confirmado no decreto 5154/04 — serve como uma grande política para a formação profissional dos jovens.

Em última instância, nós podemos dizer que o Estado brasileiro está organizando e subsidiando uma formação unilateral, assentada nos pressupostos do capital humano, como política pública de educação.

Mas, conceitualmente, essa política não pode ser pública.

Primeiro, porque tem objetivos particularistas de formação e, segundo, porque resulta dessas parcerias público-privadas.

Então, o financiamento público de vagas na rede privada não é um detalhe menor; talvez seja um detalhe constrangedor para os seus elaboradores.

Objetivamente, temos uma política consistente, de longa duração, que vem da época de Cardoso e que se consolida no governo de Lula e agora no governo Dilma.


O argumento para esse financiamento de vagas em instituições privadas é que a rede pública não dá conta da demanda. O argumento para essas iniciativas no ensino superior foi o mesmo? Isso é verdade?

É óbvio que no Brasil nós não temos uma rede pública de educação superior que atenda às demandas e necessidades sociais do país e contemple os anseios da juventude.

A questão que nós temos que nos colocar é: frente a um fato concreto, que é o reduzido tamanho da rede pública de educação superior, qual a alternativa que temos?

Na ditadura civil-militar, a alternativa foi ampliar, com subsídios públicos, a rede privada.

Qual o resultado disso? A maior parte da juventude que hoje está cursando educação superior recebe uma educação que não pode ser caracterizada como educação superior.

As pessoas concluem a graduação com uma formação extremamente deficiente, que não contribui para que a juventude possa ter uma interação virtuosa, crítica, criativa no mundo do trabalho.

O pressuposto fundamental é a manutenção de uma divisão social do trabalho em que a maior parte da juventude vai desempenhar tarefas de trabalho simples — claro que Marx, quando criou essa categoria, chamou atenção de que esse é um conceito que tem que ser analisado historicamente; claro que o trabalho simples de hoje não é o mesmo de 200 anos atrás.

Há, portanto, um horizonte de formação humana que pressupõe que a maior parte da juventude vai desempenhar tarefas simples, que não exijam um grau de escolaridade muito sofisticado.

Então, na realidade, estamos não só perdendo a chance de alterar essa correlação do público e do privado no Brasil, no que diz respeito à educação superior, mas, ao contrário, estamos azeitando a máquina pública para operar a expansão privada.

Trata-se, portanto, de uma opção pelo fortalecimento do setor privado.

Isso tem um desdobramento, ao meu ver, muito grave.

Eu não duvido de que, em alguns anos, nós vamos ter uma situação parecida com a do México, em que grande parte da juventude vai, inclusive, recusar esses cursos.

Como hoje nós já temos uma evasão enorme nas instituições de nível superior do Prouni porque muitos jovens percebem claramente que aquilo é uma enganação.


O MEC argumenta que, tanto no ensino superior quanto agora na educação profissional, o financiamento do privado acontece junto a uma expansão da rede pública. Seria, portanto, uma tentativa de atender a uma demanda imediata e construir uma política em paralelo.

É importante citar que a opção pelo setor privado desencadeia uma dinâmica que é incontrolável.

É a dinâmica de um processo regido pela lógica de buscar lucro.

Temos, nas instituições privadas, uma expansão que se dá em taxas sempre maiores do que a da rede pública.

Já o percentual dos estudantes matriculados nas instituições públicas caiu em relação ao setor privado.

Então, se nós tínhamos, nos anos 1990, cerca de 32% a 34% dos estudantes nas públicas, hoje são 22%.

Então, empiricamente, essa afirmação de que estamos agora cuidando de um acesso à rede privada porque estamos expandindo a rede pública não é verdade.

Percentualmente, a participação de estudantes nas universidades públicas no governo Lula é menor, inclusive, do que no governo Cardoso.

Além disso, grande parte dessa expansão das públicas foi, digamos, muito precária com parte significativa dos cursos sem vocação universitária e sem uma estrutura universitária, como se a instituição pública fosse se moldando ao paradigma da oferta privada.

Na realidade, o que nós temos é um processo paulatino de aproximação das instituições públicas com as instituições privadas.

Um exemplo objetivo disso: a relação (quantitativa) de professor/aluno: a meta obrigatória, que é condição sine qua non para participar do Reuni, institui uma relação professor/aluno de 1 para 18, que é a mesma das instituições privadas mais degradadas, mais mercantis.

O pressuposto de atendimento aos alunos é o mesmo das instituições privadas.

Nós temos uma expansão enorme de cursos muito precarizados em campi no interior.

Temos agora, inclusive, a medida provisória 525, que permite que novos campi universitários tenham professores regidos pela CLT com contratos sem prazo definido previamente.

Corremos o risco de termos um processo semelhante ao que aconteceu na Argentina no período Menem, que também teve uma expansão muito grande de instituições públicas, mas que não lembram nada o conceito de uma formação universitária: são escolões de terceiro grau.

Claro que isso não significa que todos os estudantes estão tendo uma formação degradada.

Há muita contradição, muita resistência e eu não tenho dúvida de que muitos professores estão se empenhando para dar a melhor formação possível.

A Universidade Federal do Oeste do Pará, uma das novas, serve como exemplo.

Lá, professores de história e geografia se formam juntos.

Podemos perguntar se isso não lembra um pouco os estudos sociais da época da ditadura militar.

E é um curso de curta duração, com apostila pré-definida, enfim, um modelo que se afasta completamente de uma concepção de formação universitária.

Verificando in loco, conversando com os professores e com os estudantes dessa universidade, vemos que há uma clara percepção de que aqueles cursos são de baixa qualidade.

Essa universidade não preenche as vagas.

Como imaginar que uma instituição pública de um país com tão poucas vagas públicas não consegue sequer preencher suas vagas?

É porque os estudantes estão percebendo que aquilo não vai lhes assegurar formação nenhuma.

Já temos, inclusive, a recusa de estudantes a frequentar esse tipo de escolão, como aconteceu no México com o equivalente aos Ifets criados lá nos últimos 25 anos.

Essas instituições cumprem um papel importante na política porque fazem parecer que há uma política de democratização do acesso, mas aqui vale aquela máxima do poeta Manuel de Barros de que às vezes as coisas crescem para menos.

Não é verdade que o apoio ao setor privado é visto como uma solução transitória enquanto as condições para a construção de uma rede pública de qualidade estão sendo operadas.

Isso não se confirma nem percentualmente nem nos projetos específicos de expansão, porque eles têm como pressuposto uma formação aligeirada.


O MEC tem defendido o ensino médio integrado como orientação da política de educação profissional. Ao mesmo tempo, destaca a importância do Pronatec e também das estratégias utilizadas no ensino superior para a inclusão dos pobres...

Quais são as vagas do Prouni?

A propaganda do ministério sobre o Prouni sempre mostra uma menina jovem, emocionada, cursando medicina socialmente orientada, que vai cuidar dos velhinhos, que realizou o seu sonho...

Mas, das vagas do Prouni, só 0,6% são para cursos de medicina.

A maioria dos cursos são frágeis do ponto de vista da formação técnico-científica.

Eu me pergunto se esse subsídio público para as escolas técnicas privadas não vai seguir o mesmo modelo.

Objetivamente, uma empresa educacional cada vez mais responde a imperativos capitalistas de lucro.

Podemos dizer que até alguns anos atrás algumas instituições privadas eram de grupos familiares, tinham um certo compromisso com a sua comunidade e mantinham pelo menos resquícios de princípios educativos mais consistentes.

Atualmente as instituições privadas cada vez mais são controladas por fundos privados de investimento, como o grupo Anhanguera, o Pitágoras e vários outros.

Esses fundos, que controlam, por exemplo, a Universidade Estácio de Sá, querem saber de resultados.

E certamente não vão investir em laboratórios mais sofisticados, com infraestrutura, pessoas qualificadas.

Investem em cursos minimalistas, com apostilas pré-definidas e um forte componente de ensino à distância.

E eu me pergunto se isso que está acontecendo nas instituições de ensino superior que vivem hoje sob os auspícios do Programa Universidade para Todos não vai se verificar também nas instituições de educação pós-médio.

Eu creio que a evidência empírica que nós temos sobre a evolução das instituições privadas na educação superior muito provavelmente vai se repetir nas escolas técnicas.

Que modelo de ‘inclusão social’ nós vamos ter com essas escolas?

Será que não temos aqui um pressuposto de que pobre deve ter educação pobre?

Ou de que os filhos dos trabalhadores pouco qualificados também serão força de trabalho de baixo custo, embora com um certo verniz?

Eu vejo uma perspectiva ético-política muito conservadora nesse processo porque naturaliza a ideia de que o dualismo educacional é o imperativo da vida real e de que não temos como mudar isso.

Então, se a vida é assim, vamos fazer dessa forma.

E eu creio que todas as lutas democráticas do século XIX para cá na educação pública objetivaram implementar o princípio da escola unitária, ou seja, aquela escola que recusa a disjunção entre pensar e fazer, mandar e obedecer.

E que, portanto, está em tensão com a divisão social do trabalho e com a expropriação de conhecimento dos trabalhadores pelo capital.

Eu lastimo muito que no governo do PT esse tipo de política, que, na prática, implementa, sem dizer, um dualismo, seja a matriz política que orienta, motiva e inclusive propicia ganhos político-eleitorais.

Basta dizer que o Prouni — talvez não hoje, mas nos seus primeiros anos — foi o programa de governo melhor avaliado pela população.

É claro: você está acenando com a possibilidade de parcelas que estavam fora do acesso à educação superior terem acesso a ela.

Mas o aluno que chega a essas instituições descobre que não está de fato numa instituição de ensino superior.

É muito grave que o Estado feche os olhos para essa realidade.


Não há brechas nessa política de educação, superior ou profissional?

Não na política do governo.

Eu acho que a política do governo tem uma matriz teórica, política, operativa muito definida e muito consolidada.

Mas existe brecha na vida real.

O que eu chamo de vida real?

Tal como aconteceu em outros momentos da história — pensemos no modelo de universidade da modernização conservadora da pós-reforma de 1968 —, há resistências, conjuntos de professores que tentam, com muito esforço pessoal, empreender mudanças, tal como está acontecendo agora na Universidade Estadual do Oeste do Pará, que tem um conflito interno duríssimo.

A minha expectativa e a minha motivação para seguir trabalhando pela escola pública é que essas resistências são reais, são vivas, são importantes.

Mas nós não podemos fechar os olhos para o fato de que essas resistências hoje estão operando numa correlação de forças muito desfavorável em relação ao projeto de uma escola politécnica, unitária, capaz de assegurar uma formação integral à juventude.

E eu acho importante que nós utilizemos, digamos, o ‘pessimismo da razão’, que é uma expressão de Gramsci.

É necessário que enfrentemos a crítica a esse padrão de expansão da educação terciária, como vem sendo chamada agora pelo Banco Mundial essa educação pós-secundária minimalista.

Eu não creio que existam resistências relevantes hoje às parcerias público-privadas.

É claro que nós temos pessoas espalhadas aqui e ali, ocupando cargos, que estão muito desconfortáveis com isso, que não concordam com essa política, mas não importa tanto analisar o sentimento individual de algumas pessoas do governo, e sim analisar qual é a resultante da força da política que está em curso.

E eu acho que a resultante hoje é essa política de fazer contratos de gestão, parcerias público-privadas, que, na realidade, são formas eufêmicas de apagar o público.

Quando estamos dizendo que não há mais fronteira entre o público e o privado, que temos, nessas instituições, a possibilidade de atender ao interesse público, na realidade estamos naturalizando a supremacia do privado sobre o público.

E isso se expressa na formação.

É importante não esquecer que hoje a rede de educação superior é de natureza empresarial.

O que nós tínhamos pelo menos até o início dos anos 1990 era uma rede dita sem fins lucrativos — não quer dizer que elas fossem sem fins lucrativos, mas um poder público com maior compromisso social poderia exigir o funcionamento dentre dessa lógica.

Cardoso quebrou esse princípio.

Principalmente a partir da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional], passa-se a trabalhar com o conceito de instituições particulares, aquelas que afirmam que possuem objetivo de lucro.

Em 1990, mais ou menos, nós tínhamos 400 instituições de ensino superior ditas sem fins lucrativos e cerca de 400 também com fins lucrativos.

Hoje existem mais ou menos 400 sem fins lucrativos e em torno de 2200 com fins lucrativos.

E é esse ethos da busca do lucro que está subjacente à enorme expansão da rede privada de educação tecnológica, que é uma expansão realmente extraordinária nos últimos 15 anos.

Quando houve a expansão das escolas técnicas privadas, elas já estavam configuradas como instituições particulares, isto é, com fins lucrativos.

Aqui temos uma contradição insanável: como frear um pragmatismo — que no capitalismo é legítimo — de busca incessante de lucro com a qualidade da educação?

Sempre vai prevalecer a lógica do lucro.

Se pegarmos a reengenharia feita agora na universidade Estácio de Sá, temos um exemplo disso: fechamento de mais de 30% dos cursos, criação de ciclos básicos sem nenhuma coerência acadêmica para racionalizar custos, turmas hiperlotadas, uma formação com cursos à distância e demissão de professores com doutorado.

Temos uma calibração da necessidade de lucro num momento de forte concorrência de grandes grupos econômicos da educação superior.

Há cursos ofertados hoje a R$ 250. Claro que com isso uma instituição familiar, que mantinha alguns resquícios de princípios acadêmicos, não sobrevive nesse mercado.

É briga de cachorro grande hoje: são fundos de investimentos estrangeiros, processos de aquisições por grandes corporações que estão na bolsa e, portanto, precisam valorizar suas ações.

A consequência inexorável é o rebaixamento da qualidade, a despeito da resistência de professores e estudantes.


Qual a sua avaliação geral sobre o projeto de Plano Nacional de Educação (PNE) que está tramitando no congresso?

O embate pelo Plano Nacional de Educação está se dando, até agora, em condições menos favoráveis do que foi durante o período Cardoso.

Nós não temos hoje uma luta nacional com grau de unidade relevante que mobilize setores da sociedade em defesa de um projeto para a educação pública.

Ao contrário, nós temos a criação de fóruns concorrentes ao Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública — como o tal de Fórum Nacional em Defesa da Educação.

Quem está articulando isso? O MEC, a Confederação Nacional do Comércio, as entidades de educação superior comunitárias que todo mundo sabe que, com poucas exceções, não são comunitárias mais.

Mas, infelizmente, tem também a presença da CUT, da CNTE...

Então, na realidade, aquele grau de unidade que foi construído no período pré-constituinte até a luta pelo Plano Nacional de Educação do período Cardoso se fragilizou muito.

A luta está fragmentada.

O Plano Nacional de Educação que está no parlamento novamente aponta para uma corrida para o futuro que nunca chega.

Ele elenca 20 pontos. O último deles é o financiamento e aponta a possibilidade de 7% do PIB para 2021.

Nós não podemos esquecer que os 7% do PIB eram uma meta a ser trabalhada a partir de 2001.

Fernando Henrique vetou. Lula manteve o veto em 2003 e terminamos o PNE em 2011 sem cumprir essa meta.

Agora vamos jogá-la para 2021. E não é só isso: o PNE que está no parlamento, e que foi feito na Conae (Conferência Nacional de Educação), não enfrenta esse problema das parcerias público-privadas, não enfrenta a regulação do setor privado.

Então, na verdade, esse PNE pode servir para consolidar essa matriz de política educacional, que envolve o Compromisso Todos pela Educação, na rede básica; e uma enorme concessão a grandes corporações do setor financeiro, da indústria editorial, do agronegócio e do setor mineral dentro das escolas, produzindo material didático, etc.

Um movimento que ainda não se estudou suficientemente é o controle sobre toda a produção editorial para as escolas.

Então, por exemplo, um grupo chamado Pearson, que é proprietário do Finantial Times, do Wall Street Journal e das maiores editoras do mundo, está comprando editoras que estavam produzindo material pedagógico no Brasil.

E eles querem trabalhar com a lógica de que é possível fazer cartilhas para as escolas públicas brasileiras e veem no convênio com estados, municípios e União um mercado de US$ 2 milhões.

Podemos nos indagar: o que essas crianças terão com uma educação Pearson?

Isso já é uma realidade no Brasil. O PNE não pode falar de valores abstratos e de declarações de amor à escola pública mas não enfrentar os problemas reais: uma mercantilização absolutamente deletéria.

Então, a minha avaliação é de que o PNE pode ser um processo de disputa e embate se nós conseguirmos dar um salto organizativo nas lutas por educação pública no Brasil.


Entrevista realizada por Cátia Guimarães em abril de 2011.

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