Por Luiz Bernardo Pericás
Todos diziam que aquela era a época mais feliz do ano. Mas ele desconfiava que isso não fosse verdade. Por trás da opulência, havia lama. As ruas iluminadas, lojas enfeitadas com adereços verdes e vermelhos, bolas de porcelana dourada, cintilantes; pinheiros de plástico importados do Paraguai; pessoas indo e vindo, carregando presentes. O ritmo alucinado de dezembro. No tórrido verão tropical, fingiam estar em algum país escandinavo, as decorações em cada canto da cidade lembrando as terras geladas do norte europeu. O Bom Velhinho, de longas barbas brancas, pesadas botas de couro, luvas de pelica e gorro de lã, parecia que ia derreter. Quase desmaiava de calor.
Na televisão de marca japonesa, exposta na vitrine de uma loja de eletrodomésticos, o noticiário anunciava que Mickey Mouse, Donald e Pluto, desempregados, junto com Michael Moore, organizavam o movimento “Occupy Disneyworld”. Já haviam incendiado o Castelo da Cinderela, totalmente em chamas, e saqueado o Epcot Center. Lutavam raivosamente contra a polícia da Flórida, que tentava conter os tumultos.
E num aparelho de TV fabricado na Coreia, na prateleira justo ao lado, uma apresentadora catagenética comentava, num programa matinal, a beleza da Catedral de Nostradamus, em Paris, e, em seguida, mudava de assunto, garantindo que o homem não havia ido à lua. Afinal, nenhuma missão espacial encontrara são Jorge ou o Dragão por lá. As imagens na internet mostravam, indubitavelmente, que as sombras e a iluminação dos astronautas e da bandeira fincada no solo do satélite natural não eram reais. Aquelas cenas só podiam ter sido feitas num estúdio pelo Stanley Kubrick!
Na esquina da rua, uma família inteira de migrantes miseráveis e piolhentos pedia esmolas, de mãos esticadas, sem receber a atenção de ninguém, enquanto uma senhora obesa desfilava com seu afghan hound, que acabara de sair do cabelereiro. Havia feito escova progressiva e clareado os pelos sedosos! Mais adiante, um guarda de trânsito recebia, sem qualquer problema, o suborno de um motorista, que estacionara em local proibido. Era só uma “caixinha”. Ele haveria de quebrar esse galho… Ao mesmo tempo, ali perto, um policial militar ia recolher as “contribuições” e “taxas” dos camelôs para deixar que continuassem trabalhando naquele bairro.
A multidão andava com quinquilharias produzidas por mão-de-obra infantil de algum país asiático. Mas isso não importava. Afinal, aquelas crianças amarelas, semiescravizadas em sweat shops infectos, viviam do outro lado do mundo. O problema era delas. De qualquer forma, o preço dos produtos era bom. Uma pechincha! Ninguém seria louco de perder aquelas ofertas!
E no meio das massas que corriam para fazer suas compras natalinas, lá estava Gonzalo, o querido sapo argentino, de mau humor, como sempre. Acabara de ler um livro que o impressionara, No zoológico de Berlim, do escritor curitibano Guido Viaro (neto do famoso pintor paranaense de mesmo nome). O romance contava a história de M’ba Nkrumah, retirado de sua vila africana e enviado para viver, aprisionado, num parque alemão. Esta, uma narrativa ficcional. Mas os zoológicos humanos de fato existiram. Quem viajasse para a França, Alemanha, Holanda, Espanha, Inglaterra, Itália e Estados Unidos no final do século dezenove e boa parte do século passado, poderia encontrar seres humanos sendo exibidos como animais em feiras ou zoos. Eram homens, mulheres e crianças, trazidos de lugares tão distantes como as ilhas do Pacífico Sul, a África e a América Latina. Assim, samoanos, núbios e aimarás bolivianos eram levados para Londres ou Nova Iorque, e nessas cidades, expostos ao grande público, que pagava para ver o que consideravam “seres inferiores” e “aberrações” da natureza. Tudo para mostrar uma suposta superioridade do homem branco e da civilização ocidental. E justificar as abomináveis políticas coloniais das grandes potências.
O mais famoso deles talvez tenha sido o pigmeu Ota Benga, um jovem trazido do Congo em 1904 e, dois anos mais tarde, jogado na jaula dos macacos, no zoológico do Bronx, onde era “visitado” por quarenta mil pessoas todos os domingos. Era divulgado como o “elo perdido”. O mbuti havia sido convencido pelo “explorador” Samuel Phillips Verner (contratado pelo “antropólogo” William McGee para trazer pigmeus africanos para os Estados Unidos), a ir com ele para Nova Iorque, onde estaria mais seguro. Afinal de contas, Verner chegou justo a tempo de salvar a vida de Ota, que estava para ser comido por uma tribo inimiga de canibais, que o havia aprisionado após uma batalha. Com bastante dinheiro no bolso, o “aventureiro” norte-americano “comprou” o pigmeu e mais cinco colegas dos rivais antropófagos e os levou para a “América”.
A ideia original de McGee (autor de um livro racista, The Trend of Human Progress, publicado em 1899) era construir um zoológico humano em St. Louis, e para isso, trazer, dos quatro cantos do planeta, tipos que ele considerava “estranhos” e “exóticos”: os homens mais altos do mundo, diretamente da Patagônia; os mais peludos, os ainus do Japão; também igorrotes filipinos, cocopahs (indígenas mexicanos), esquimós… e os pigmeus do Congo. Tudo parecia estar indo de acordo com seus planos.
Benga e seus companheiros chegaram de navio em Nova Orleans e de lá, seguiram de trem para a Feira Mundial de St. Louis. Ota ficou no Missouri por quase um ano, mostrando ao público seus dentes serrados, pontudos, e posando para fotos por vinte e cinco centavos de dólar cada. Em 1905, vinte milhões de espectadores já haviam visto o pequeno africano. Até que ele se cansou e conseguiu retornar ao Congo, onde descobriu que sua aldeia havia sido completamente devastada por soldados belgas. Logo depois, perdeu sua esposa, mordida por uma cobra. Desiludido, pediu a Verner que o levasse de volta aos Estados Unidos. E assim, Ota iria parar novamente numa jaula, desta vez no zoológico de Nova Iorque.
Apesar do “êxito” da exibição, uma consternação e indignação geral tomaram conta do grande público, que pressionou pela libertação do rapaz. Benga, agora um fumante inveterado e amante da bebida, foi mandado, por insistência de pastores batistas, para um orfanato de crianças negras, onde deveria ser “civilizado”. Lá começou a se vestir com roupas ocidentais, teve aulas de como usar talheres, como se comportar à mesa, como comer e beber, teve seus dentes em forma de flechas “consertados” e foi obrigado a frequentar aulas de religião.
Alguns anos mais tarde, depois de passar por esse humilhante processo “civilizatório”, foi morar numa cidadezinha da Virgínia, onde trabalhou numa fábrica de cigarros. Mas estava triste, desconsolado. Aquele não era seu mundo. Queria voltar para sua terra, mas nunca conseguiu. Passou seus últimos dias gritando a todos: “Sou um homem! Sou um homem!” Certo dia, desanimado, entrou num celeiro, tirou as capas dos dentes (deixando-os pontiagudos novamente), acendeu uma fogueira cerimonial e deu um tiro na cabeça. Ele tinha apenas 32 anos de idade.
Mas havia outros casos. Em 1876, por exemplo, o alemão Carl Hagenbeck encomendou a um colaborador vários núbios, que foram apresentados em tournée ao público parisiense, londrino e berlinense com grande sucesso. Depois foi a vez de exibir esquimós em Hamburgo, com igual êxito.
Na França e Holanda esse tipo de show atraía multidões. Foi assim na Exposição Colonial Internacional de Amsterdã, em 1883, nas Feiras Mundiais de Paris em 1889, 1900, 1907 e 1931, e nas exposições coloniais de Marselha em 1906 e 1922. Na Exposição Colonial de 1907, em Vincennes, nos arredores da capital francesa, era possível visitar um “monumento à glória da expansão colonial” e o Pavilhão do Benim, assim como outros com “amostras” dos territórios controlados pelos franceses. Eram canacas da Nova Caledônia e famílias inteiras do Senegal, Niger, Guiné e Daomé, expostas em réplicas de seus vilarejos originais. Homens e mulheres ficavam em jaulas, seminus. E por causa das duras condições de vida (frio e doenças), muitos não iriam sobreviver. Pelo menos um milhão de pessoas visitaram aquela feira.
Há quem diga que entre 1870 e 1930, um bilhão e meio de pessoas frequentaram esse tipo de evento ou zoos em todo o mundo. E que mais ou menos no mesmo período, em torno de vinte e cinco mil indivíduos foram levados para serem exibidos naqueles lugares.
Nos Estados Unidos, como já se percebeu, não foi diferente. O Zoológico de Cincinnatti, por exemplo, expôs cem índios sioux por três meses, em 1896, para o deleite do público pagante. E outros povos indígenas também foram engaiolados em locais similares…
Gonzalo olhava em volta e achava que as coisas não haviam mudado muito. Todos ali estavam num zoológico humano e não se davam conta disso, sendo expostos constantemente em redes sociais, câmeras de segurança, celulares, imagens da televisão, máquinas fotográficas de transeuntes. E todos sendo vendidos, sem perceber: comprem, comprem, comprem… Roupas de marca, produtos supérfluos, propagandas nas paredes. Consumismo por todos os lados. Emissoras de televisão e computadores controlando as mentes. As grandes corporações tomando conta de tudo. Vendidos! Mas seu valor, em geral, era baixo. Quem sabe, as pessoas quisessem mesmo ser produtos, ou então, animais numa grande jaula. Seriam compradas por quem desse a melhor oferta. E embrulhadas para presente. Ou então, exibidas como macacos no zoológico. Todos tinham seu preço…
Já Santa Claus, com esclerose múltipla, cirrose hepática e uma úlcera perfurada, badalava o sino enferrujado em sua mão e gritava “ho, ho, ho” (mas, neste caso, não se tratava de Ho Chi Minh), em meio a acessos de tosse e uma terrível dor nas costas, de tanto carregar o saco cheio de dívidas que acumulara ao longo do ano. Iria ganhar uns míseros trocados por seu trabalho. Sua roupa vermelha puída já estava, àquela altura, bem desbotava, amassada e cheirando a suor… mas as crianças gorduchas e endinheiradas que o cercavam pedindo presentes não reparavam nisso. O velho Noel ria. Mas no fundo queria chorar.
Aquela era a época mais feliz do ano, pelo menos para alguns. Mas Gonzalo desconfiava. O único conforto ali era a presença do saxofonista Kalaparusha Maurice McIntyre e do jazzman Alípio Carvalho Neto, que tocavam seus instrumentos no meio da rua em troca de algumas moedas. E também de Bob Dylan em outra esquina, maltrapilho, irreconhecível, violão em punho e cabelos desgrenhados, que cantava um de seus clássicos sem que ninguém percebesse de quem se tratava. O público só queria o grande espetáculo midiático, e o valor do artista era apenas medido pelas capas de revista, manchetes dos jornais, aplausos dos fãs e palcos iluminados. Sem o suposto “glamour”, não eram nada aos olhos da gentalha. Mas isso não interessava ao trio: o mais importante era a “música”. Seu repertório talvez salvasse a alma de alguns incautos a caminhar por aqueles lados. O resto era lama.
Então, uma câmera se aproximou de Gonzalo, desavisado. Ela chegou cada vez mais perto de seu rosto. E agora, neste exato momento, está focando os olhos amarelados do batráquio. Ele está olhando fixamente para a lente. E, consequentemente, para você. Sim, para você, caro leitor. O anfíbio esverdeado e tenso está com os olhos bastante inchados. Anda cansado. Ainda assim, o sapo argentino, com um grosso cigarro entre os lábios, aproveita esta oportunidade para desejar um Feliz Natal a todos vocês.
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Já está à venda em versão eletrônica (ebook) o livro de Luiz Bernardo Pericás publicado pela Boitempo Editorial, Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, disponível no Gato Sabido e na Livraria Cultura.
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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
No Blog da Boitempo.
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