O Conselho de
Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul aprovou, por
unanimidade, o voto do relator, Dr. Cláudio Baldino Maciel, deferindo a
solicitação de retirada de quaisquer símbolos religiosos das dependências do
TJ-RS, feita pelas entidades Rede Feminista de Saúde, SOMOS – Comunicação, Saúde
e Sexualidade, NUANCES – Grupo pela Livre Orientação Sexual, Liga Brasileira de
Lésbicas, Marcha Mundial de Mulheres, THEMIS – Assessoria Jurídica e Estudos de
Gênero.
O voto do relator
encontra-se reproduzido abaixo, e constitui-se numa lição sobre o que seja um
Estado laico, tal qual estabelecem os nossos textos constitucionais desde o
final do período imperial brasileiro. É um texto claro, cuja leitura conduz a uma percepção adequada da imiscibilidade entre a religiosidade (ou a não religiosidade) e a res publica.
Ementa
Expediente
administrativo. Pleito de retirada dos crucifixos e demais símbolos religiosos
expostos nos espaços do Poder Judiciário destinados ao público. Acolhimento.
A presença de crucifixos
e demais símbolos religiosos nos espaços do Poder Judiciário destinados ao
público não se coaduna com o princípio constitucional da impessoalidade na
Administração Pública e com a laicidade do Estado brasileiro, de modo que é
impositivo o acolhimento do pleito deduzido por diversas entidades da sociedade
civil no sentido de que seja determinada a retirada de tais elementos de cunho
religioso das áreas em questão.
Pedido acolhido.
Relatório
Des. Cláudio Baldino
Maciel (Relator)
Diversas entidades da
sociedade civil, todas qualificadas na peça inicial deste expediente
administrativo, postulam a retirada dos crucifixos e de outros símbolos
religiosos atualmente expostos nos espaços públicos do Poder Judiciário,
fundamentando tal pedido no artigo 19 da Constituição Federal e no fato de ser
o Brasil um Estado laico.
A Assessoria Especial e o
então Assessor da Presidência, Dr. Antonio Vinicius Amaro da Silveira,
manifestaram-se pelo indeferimento do pedido, o que foi acolhido pelo anterior
Presidente deste Tribunal de Justiça, Desembargador Leo Lima (fl. 15).
Sobreveio, então, pedido
de reconsideração, que foi encaminhado ao egrégio Conselho da Magistratura, na
forma do artigo 8º, inciso IX, alínea “b”, de seu Regimento Interno, sendo-me
distribuído o expediente.
Vieram-me conclusos.
É o relatório.
Voto
Des. Cláudio Baldino
Maciel (Relator)
Eminentes colegas.
Embora sejam ouvidas
algumas vozes apontando para a irrelevância do tema ora tratado quando cotejado
com as graves questões enfrentadas pelo Poder Judiciário brasileiro, não hesito
em afirmar, em primeiro lugar, que o tema deste expediente é muito relevante,
especialmente porque diz respeito a matéria regida pela Constituição Federal e
porque se trata de refletir a respeito da relação entre Estado e Igreja em um
país republicano, democrático e laico.
Aliás, a demonstrar a relevância do tema para as sociedades mais avançadas e com consolidado estágio democrático, basta referir recentes decisões da Corte Constitucional da Alemanha, da Suprema Corte Americana e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, do que se tratará adiante.
Aliás, a demonstrar a relevância do tema para as sociedades mais avançadas e com consolidado estágio democrático, basta referir recentes decisões da Corte Constitucional da Alemanha, da Suprema Corte Americana e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, do que se tratará adiante.
A influência da Igreja
sobre o Estado, especialmente na Idade Média, com todos os abusos que daí
advieram (Cruzadas, Santa Inquisição, etc.) foi uma das causas que acabaram
levando, no âmbito do mundo ocidental, à laicidade estatal.
Ainda há, contudo,
Estados teocráticos. O Irã islâmico, antiga Pérsia secular, é um exemplo
sugestivo de como nesse modelo de organização política uma única doutrina
religiosa assume tão decisiva importância para a integral conformação do país e
mesmo para o destino de seu povo. E disso deriva, quase sempre, intolerância
extrema com crenças religiosas distintas da religião oficial. Recente notícia
na imprensa mundial divulgou o fato de que um cidadão iraniano chamado Youssef
Nadarkhani, por causa de sua conversão ao cristianismo, resultou condenado à
morte uma vez que não teria aceitado a proposta estatal de reconversão ao Islã.
A nação brasileira, a
exemplo do que ocorre no mundo ocidental em geral desde o final do Império e
através de todas as Constituições republicanas, afirmou tratar-se o Brasil de
um Estado laico.
O artigo 19 da
Constituição Federal de 1988 veda expressamente à União, Estados e Municípios
estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o
funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência
ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Por outro lado, no rol
dos direitos fundamentais, a Constituição assegura aos cidadãos a liberdade
religiosa, a liberdade de crença e de culto, além da igualdade,
independentemente de suas convicções religiosas.
Logo, quis o Brasil que o
Estado seja laico, vale dizer, um Estado inteiramente separado da Igreja e que,
além de não adotar, se mostre indiferente e neutro com relação a qualquer
religião professada por parte de seu povo, embora deva não intromissão e
respeito a todas.
A laicidade opera em duas
direções, complementares e importantes: por um lado, o Estado não se pode
imiscuir em temas religiosos, ou seja, não pode embaraçar, na dicção
constitucional, o funcionamento de igrejas e cultos religiosos ou mesmo
manifestação de fé ou crença dos cidadãos, o que significa salvaguarda eficaz
para a prática das diversas confissões religiosas; por outro lado, no entanto,
a laicidade protege o Estado, como entidade neutra nesta área, da influência
religiosa, não podendo qualquer doutrina ou crença religiosa, mesmo
majoritária, imiscuir-se no âmbito do Estado, da política e da res pública.
Em outras palavras, o
Estado laico protege a liberdade religiosa de qualquer cidadão ou entidade, em
igualdade de condições, e não permite a influência religiosa na coisa pública.
Na França, cuja república
ainda está contaminada por um certo grau de jacobinismo que remonta à Revolução
de 1789 (“o mundo só será feliz quando o último rei for enforcado com as tripas
do último padre”, teriam dito Voltaire ou Jean Meslier, o que bem reflete o
clima da época), no ano de 1994 foi editada lei que proíbe que alunos de
escolas públicas portem símbolos religiosos ostensivos. O objetivo, conquanto
genérico, na verdade foi a proibição da burka para mulheres de determinado
credo religioso, porque tal medida violaria a liberdade religiosa dos demais
cidadãos. Ou seja, na França se proíbe determinadas manifestações individuais
da religiosidade.
No Brasil, em meu modo de
ver, não seria juridicamente admissível tal tipo de restrição, já que atinge o
âmbito individual da experiência religiosa, explicitamente protegido pela Carta
Maior.
Ao contrário, em nosso
país se salvaguarda exatamente a crença e a prática religiosa individual ou
coletiva ante a ação do Estado, que não pode nelas interferir. Exatamente por
tal motivo se exige a neutralidade estatal em matéria religiosa, ou seja, deve
o Estado adotar postura que se afaste de qualquer atividade, prática religiosa
ou exposição de símbolos religiosos em instituições públicas como forma de
garantir sua neutralidade em face de valores religiosos ou mesmo da falta de
tais valores.
À margem da Constituição
Federal, a prática, contudo, não tem sido exatamente esta.
Por exemplo, hoje é fácil
constatar a existência de uma política de concessão de rádios e televisões que,
além de criar outros graves problemas (criou uma bancada da comunicação social
com uma quantidade alarmante de parlamentares titulares de concessões,
circunstância que viola frontalmente a CF), proporcionou a criação e a
manutenção de uma bancada evangélica no Congresso Nacional, hoje com número e
força suficiente para barrar a tramitação de qualquer projeto de lei que
contrarie elementos de sua doutrina religiosa.
Nada de errado haveria em
tal fato se o fenômeno não estivesse apoiado, para se criar e manter, em uma
extensa rede de rádios e televisões que representam serviço público concedido,
cujos critérios de concessão violam, para falar o menos, a isonomia com que tal
tema deveria ser tratado no seio de uma nação multicultural, multirracial e
multirreligiosa como a nossa.
Também assim ocorre no
âmbito do Poder Judiciário e outros espaços públicos de prédios estatais,
quando se constata a presença de símbolos religiosos como, por exemplo, o
crucifixo.
A questão é, portanto,
mais complexa e profunda do que possa parecer a um primeiro olhar.
Não se trata,
evidentemente, de defender postura ateísta ou refratária à religiosidade. No
dizer de Daniel Sarmento[1]:
“O ateísmo, na sua negativa de existência de Deus, é também uma crença religiosa, que não pode ser privilegiada pelo Estado em detrimento de qualquer outra cosmovisão. Pelo contrário, a laicidade impõe que o Estado se mantenha neutro em relação às diferentes concepções religiosas presentes na sociedade, sendo-lhe vedado tomar partido em questões de fé, bem como buscar o favorecimento ou o embaraço de qualquer crença.”[2]
Em Portugal, um dos
maiores especialistas da matéria assim se manifesta a respeito:
“A concessão estadual de uma posição de vantagem a instituições, símbolos ou ritos de uma determinada confissão religiosa é suscetível de ser interpretada, pelos não aderentes, como uma forma de pressão no sentido da conformidade com a confissão religiosa favorecida e uma mensagem de desvalorização das restantes crenças. Por outras palavras, ela é inerentemente coerciva.”[3]
Daí vem que mesmo nos
Estados Unidos da América, país com forte tradição religiosa representada pela
própria expressão “in God we trust”, lema norte americano estampado em notas de
dinheiro e moedas daquele país, a Suprema Corte, no caso Engel x Vitale, ainda
no ano de 1962, ressaltou que:
“Quando o poder, prestígio ou apoio financeiro do Estado é posto a serviço de uma particular crença religiosa, é clara a pressão coercitiva indireta sobre as minorias religiosas para que se conformem a religião prevalecente oficialmente aprovada.”[4]
Em outras palavras,
decidiu a Suprema Corte americana que a preferência estatal por uma determinada
crença com a ostentação de visíveis símbolos religiosos em espaço público
institucional representa uma indevida adesão oficial a uma corrente religiosa e
uma correspondente coerção relativa às demais correntes ou àqueles que não
professam crença alguma.
Na jurisdição
constitucional alemã, da mesma forma, está assente a inconstitucionalidade da
presença de crucifixos, pelos mesmos motivos, em salas de aula do ensino
fundamental.
Assim decidiu o Tribunal
Constitucional alemão[5]:
“O art. 4, I, da Lei Fundamental, deixa a critério do indivíduo decidir quais símbolos religiosos serão por ele reconhecidos e adorados e quais serão por ele rejeitados. Em verdade, não tem ele direito, em uma sociedade que dá espaço a diferentes convicções religiosas, a ser poupado de manifestações religiosas, atos litúrgicos e símbolos religiosos que lhe são estranhos. Deve-se diferenciar disso, porém, uma situação criada pelo Estado, na qual o indivíduo é submetido, sem liberdade de escolha, à influência de uma determinada crença, aos atos nos quais ela se manifesta, e aos símbolos pelo meio dos quais ela se apresenta… O Estado, no qual convivem seguidores de convicções religiosas e ideológicas diferentes ou mesmo opostas, apenas pode assegurar suas coexistências pacíficas quando ele se mantém neutro em matéria religiosa.”
A Suprema Corte americana,
no caso County of Allengheny x ACLU[6], considerou inconstitucional, por
violação da anti-establishment cause,
a manutenção de um presépio natalino na escadaria de um tribunal, já que o
mesmo expressava mensagem religiosa incompatível com a primeira emenda que
proíbe o Estado de transmitir ou tentar transmitir uma mensagem de que uma
religião ou uma crença religiosa em particular seja favorecida ou preterida.
Foi certamente com base
em compreensão similar que o então Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, em fevereiro de 2009, determinou a retirada do crucifixo da sala do
Órgão Especial e desativou a capela confessional existente nas dependências do
tribunal, promovendo a criação de um local ecumênico no prédio. O Presidente em
questão tem origem judaica e, talvez por tal circunstância, tenha melhor
compreendido a discriminação que possa significar, para quem professa outras
crenças, o símbolo máximo de uma única determinada religião em um prédio
público.
Ora, a laicidade deve ser
vista, portanto, não como um princípio que se oponha à liberdade religiosa. Ao
contrário, a laicidade é a garantia, pelo Estado, da liberdade religiosa de
todos os cidadãos, sem preferência por uma ou outra corrente de fé. Trata-se da
garantia da liberdade religiosa de todos, inclusive dos não crentes, o que
responde ao caro e democrático princípio constitucional da isonomia, que deve
inspirar e dirigir todos os atos estatais de acordo com um imperativo
constitucional que não se pode desconhecer ou descumprir.
Há quem refira, como
defesa possível de sua tese, o caráter não-religioso do crucifixo. Sem razão,
contudo. É evidente que o símbolo do crucifixo remete imediatamente ao
Cristianismo, consistindo em sua imagem mais evidente.
A Corte Constitucional
alemã, refutando o argumento de que o crucifixo é mero enfeito que deveria ser
tolerado em ambiente estatal por força da tradição, dispôs:
“A cruz representa, como desde sempre, um símbolo religioso específico do Cristianismo. Ela é exatamente seu símbolo por excelência. Para os fiéis cristãos, a cruz é, por isso, de modos diversos, objeto de reverência e de devoção. A decoração de uma construção ou de uma sala com uma cruz é entendida até hoje como alta confissão do proprietário para com a fé cristã. Para os não cristãos ou ateus, a cruz se torna, justamente em razão de seu significado, que o Cristianismo lhe deu e que teve durante a história, a expressão simbólica de determinadas convicções religiosas e o símbolo de sua propagação missionária. Seria uma profanação da cruz, contrária ao auto-entendimento do Cristianismo e das igrejas cristãs, se se quisesse nela enxergar, como as decisões impugnadas, somente uma expressão da tradição ocidental ou como símbolo de culto sem específica referência religiosa.”[7]
Vê-se, assim, que a
questão ora analisada não é prosaica ou simples, já que não se trata de julgar
forma de decoração ou preferência estética em ambientes de prédios do Poder
Judiciário, senão de dispor sobre a importante forma de relação entre Estado e
Religião num país constituído como república democrática e laica.
Parece-me evidente, no
entanto, que embora sejam espaços institucionais os gabinetes dos magistrados
podem retratar a sua preferência pessoal, especialmente porque não se
apresentam como áreas de circulação do público em geral. Não raramente se vê,
em tais gabinetes, vistosos símbolos de clubes de futebol, bandeiras e
distintivos, o que pode, a critério de alguns, ser algo de mau gosto, mas se
revela situação juridicamente sustentável já que se está tratando de um
ambiente bem mais privado.
O mesmo se diga com
relação a símbolos religiosos ou de outra natureza.
Nada impede que um
magistrado, no interior de seu gabinete de trabalho, faça afixar na parede um
símbolo religioso ou uma fotografia de Che Guevara.
No entanto, à luz da
Constituição, na sala de sessões de um tribunal, na sala de audiências de um
foro, nos corredores de um prédio do Judiciário mostra-se ainda mais indevida a
presença de um crucifixo (ou uma estrela de Davi do judaísmo, ou a Lua
Crescente e Estrela do Islamismo) do que uma grande bandeira de um clube de
futebol.
Isto porque, ao passo em
que a presença da bandeira de um clube de futebol na sala de sessões de um
tribunal não fere o princípio da laicidade do Estado (ao contrário da presença
da presença do crucifixo, que fere tal princípio), a presença de qualquer deles
– bandeira de clube ou crucifixo – em espaços públicos do Judiciário fere o
elementar princípio constitucional da impessoalidade no exercício da
administração pública. Ou seja, a presença de símbolos religiosos em tais
locais viola, além do princípio da laicidade do Estado e da liberdade
religiosa, também o princípio da impessoalidade que rege a administração
pública.
Os símbolos oficiais da
nação brasileira estão previstos na Constituição Federal, sendo eles a
bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais[8]. São símbolos do Estado do Rio
Grande do Sul a bandeira rio-grandense, o hino farroupilha e as armas
tradicionais[9]. Tais são os símbolos, portanto, que podem ser ostentados em
ambientes formais do Poder Judiciário, abertos ao público, sem violação do
princípio constitucional da impessoalidade.
Estabelecimentos estatais
são locais públicos pertencentes ao Estado. Assim, devem ser administrados em
consonância com os princípios, implícitos e explícitos, que regem a
Administração Pública, dentre eles o da impessoalidade[10], o que justifica
plenamente, em meu sentir, a procedência do pleito de que ora estamos a tratar.
O princípio da
impessoalidade está imbricado com o princípio da isonomia, visto que os atos
dos administradores devem servir a todos, indistintamente, dada a igualdade
estabelecida pela Carta Maior entre os cidadãos, inexistindo a possibilidade
jurídica de o Estado, por seus administradores, fazer distinções filosóficas,
políticas ou religiosas em sua atuação política e administrativa.
Celso Antonio bandeira de
Mello assim leciona a respeito do ponto:
“O princípio da impessoalidade traduz a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.”[11]
A outra vertente do
princípio referido é a de que a administração pública tem por norte o interesse
público, impondo-se aos administradores que atuem em nome do Estado, sendo-lhes
vedado, por tal razão, agir por interesse pessoal, em nome próprio, por crença
ou simpatia religiosa, elegendo um dentre tantos símbolos possíveis (ou a
ausência destes) para ostentar em prédios sob sua administração.
Para José Afonso da
Silva, que representa doutrina pacífica sobre o tema:
Ora, o Estado não tem religião. É laico. Assim sendo, independentemente do credo ou da crença pessoal do administrador, o espaço das salas de sessões ou audiências, corredores e saguões de prédios do Poder Judiciário não podem ostentar quaisquer símbolos religiosos, já que qualquer um deles representa nada mais do que a crença de uma parcela da sociedade, circunstância que demonstra preferência ou simpatia pessoal incompatível com os princípios da impessoalidade e da isonomia que devem nortear a administração pública.“Isto ocorre para que as realizações administrativo-governamentais não sejam propriamente do funcionário ou da autoridade, mas exclusivamente da entidade pública que a efetiva.”[12]
Causaria a mesma repulsa
à ideia de laicidade estatal, por exemplo, a ostentação, em um altar de Igreja
católica, do brasão do Estado do Rio Grande do Sul. Em tal hipótese, contudo,
ao menos os princípios constitucionais estariam preservados, já que a
administração da Igreja, por não se constituir em administração pública, a eles
não está jungida.
Mas não somente isso.
Também o princípio da
legalidade impõe o acolhimento do pleito vertido neste expediente
administrativo.
Para o cidadão
brasileiro, em geral, vige a regra constitucional de que é permitido fazer tudo
aquilo que não estiver vedado por lei.
Já para a administração
pública, no entanto, o princípio é outro: só é permitido fazer o que está
previsto em lei.
Ao analisar o caso em
questão vê-se que não há lei que preveja ou disponha sobre a presença de
símbolos religiosos em espaços do Judiciário abertos ao público. Mais do que
isso, a Constituição implicitamente os veda.
Veda-os não somente como
decorrência lógica do princípio da laicidade estatal, mas também em face da
aplicação dos diversos outros princípios constitucionais já referidos
(impessoalidade, isonomia, legalidade) e do direito fundamental à liberdade
religiosa de todos os jurisdicionados que possam se fazer presentes naqueles
locais estatais.
Por tais motivos, o
Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio de seu Órgão Especial[13], deliberou
pela invalidade de lei do Município de Assis que determinara a inserção nos
impressos oficiais da municipalidade do versículo bíblico “Feliz a Nação cujo
Deus é o Senhor”. Entendeu o tribunal que:
“Como deve o Estado manter-se absolutamente neutro em relação às diversas igrejas, não podendo beneficiá-las nem prejudicá-las, não tem cabimento a inserção do versículo bíblico nos impressos e documentos oficiais do Município, pois isso evidencia simpatia em relação a determinadas orientações religiosas, o que é expressamente vedado pela Lei Maior.”
É verdade que, conquanto
laico o Estado brasileiro, paradoxalmente o preâmbulo da Constituição Federal
invoca a menção a Deus, o que tem sido um argumento utilizado para justificar
certa presença religiosa em instituições públicas.
É atualmente pacífico na
jurisprudência constitucional, contudo, o entendimento de que o preâmbulo da
Constituição não possui força normativa. O Ministro Sepúlveda Pertence, no
julgamento da ADI nº. 2076-5, referiu ironicamente em seu voto:
“Esta locução ‘sob a proteção de Deus’ não é norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar obrigações para a divindade invocada. Ela é uma afirmação de fato jactanciosa e pretensiosa, talvez, de que a divindade estivesse preocupada com a Constituição do país”.[14]
Por fim, poder-se-ia
argumentar com a tradição do uso de crucifixos em espaços públicos no Brasil,
não havendo dúvidas a respeito de que tradicionalmente são utilizados tais
símbolos religiosos.
No entanto, absolutamente
não é papel do Judiciário legitimar acriticamente qualquer tradição social,
especialmente se excludente ou inconstitucional. Já não se discute, na
atualidade, o legítimo papel do Direito que se opõe à ideia de meramente
afirmar práticas hegemônicas da maioria social, mesmo que contrárias ao texto
constitucional. Ademais, o princípio democrático contramajoritário justificaria
plenamente a defesa de eventuais minorias quanto ao abuso das práticas
religiosas da maioria, especialmente as de raiz inconstitucional.
O nepotismo, por exemplo,
foi uma prática tradicional no Brasil. Tradicionalmente houve uma certa
promiscuidade entre o público e o privado. Não obstante, está sendo superado o
nepotismo porque sobre tal “tradição” o Judiciário, devidamente provocado, teve
uma abordagem crítica que considerou tal prática inconstitucional exatamente
por violar, de igual modo, o princípio da impessoalidade na administração
pública.
Constituem objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, de acordo com o artigo 3º da
Constituição de 1988, dentre outros, promover o bem de todos, sem preconceito
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
O cidadão judeu, o
muçulmano, o ateu, ou seja, o não cristão, é tão brasileiro e detentor de
direitos quanto os cristãos. Tem ele o mesmo direito constitucionalmente
assegurado de não se sentir discriminado pela ostentação, em local estatal e
por determinação do administrador público, de expressivo símbolo de uma outra
religião, ainda que majoritária, que não é a sua.
Por motivos semelhantes,
no dia 3 de novembro de 2009 a Corte Europeia de Direitos Humanos condenou a
Itália (Lautsi x Italy) ao pagamento de 5.000 mil euros, a título de danos
morais, a uma cidadã que se sentia ofendida diante da manutenção de crucifixos
no âmbito das escolas públicas, o que revela, uma vez mais, a inquestionável
centralidade e a indiscutível relevância constitucional do tema pertinente aos
limites conceituais da cláusula da separação entre Estado e Igreja.
A Corte Europeia fez prevalecer
os valores centrais da liberdade e da igual dignidade das crenças, e das
descrenças, repudiando, assim, qualquer comportamento do Estado que seja capaz
de identificá-lo com determinado pensamento religioso em detrimento de todos os
demais. Além disso, o Tribunal Europeu dispôs que, muito embora o crucifixo
seja mesmo revestido de múltiplos significados, a significação religiosa é
aquela que lhe é “predominante” e que lhe confere sentido. Finalmente, o
tribunal assegurou a relevante premissa de que a liberdade de crença (a
compreender a liberdade de crer ou não crer) impõe ao Estado a obrigação
constitucional de
“se abster de qualquer imposição, ainda que indireta, de determinado pensamento religioso, especialmente naqueles locais nos quais as pessoas se fazem dependentes dos poderes públicos”.
Assim sendo, conquanto o
CNJ já tenha decidido pontualmente que a presença de símbolos religiosos em
ambientes judiciários não revela inadequação censurável, estou certo, data venia, de que se resguardar o
espaço público do Judiciário para o uso somente de símbolos oficiais do Estado
é o único caminho que responde aos princípios constitucionais republicanos de
um estado laico, devendo ser vedada a manutenção de crucifixos e outros
símbolos religiosos em ambientes públicos dos prédios do Poder Judiciário no
Estado do Rio Grande do Sul.
Ademais, especialmente na
época atual em que tantos temas de interesse religioso estão sendo trazidos à
decisão judicial (aborto de feto anencéfalo e uniões homoafetivas, por exemplo) e sobre os quais as Igrejas manifestam e
lutam publicamente pela defesa de determinada solução com base em sua doutrina
religiosa, o julgamento feito em uma sala de tribunal sob um expressivo símbolo
de uma Igreja e de sua doutrina não me parece a melhor forma de se mostrar o
Estado-juiz equidistante dos valores em conflito.
Creio, por fim, que mesmo
para os que professam a religião cristã esse é o melhor caminho.
Antecipando-se a este
debate, há aproximadamente dois mil anos, Jesus Cristo, segundo o evangelho de
Matheus, propôs a correta solução do problema referente à separação entre
Igreja e Estado. Indagado a respeito da licitude do pagamento de tributos, com
Sua imensa sabedoria respondeu:
“Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”[15]
A administração dos
prédios e espaços do Poder Judiciário, tal como a obrigação de pagar tributos,
é assunto dado a “César”.
Voto, portanto, no
sentido de acolher o pleito de retirada de crucifixos e outros símbolos
religiosos eventualmente existentes nos espaços destinados ao público nos
prédios do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul.
É o voto.
Acompanharam o voto do
Relator os Desembargadores André Luiz Planella Villarinho, Liselena Schifino
Robles Ribeiro, Marcelo Bandeira Pereira, que presidiu a sessão do Conselho da
Magistratura, e Guinther Spode.
[1] Revista Eletrônica
PRPE, maio de 2007
[2] JJ Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol I, Coimbra, Ed.
Coimbra, 2007, p.613, apud Sarmento, op cit.
[3] Jónatas Eduardo
Mendes Machado. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva.
Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 348-349 (apud Daniel Sarmento)
[4] apud Daniel Sarmento,
op. cit
[5] BVerfGE 93, I (1991)
– apud Daniel Sarmento, op cit
[6] US573 (1989), apud
Sarmento, op cit
[7] BVerfGE, 91, I
(1995), idem
[8] Art. 13, par. 1º, da
CF88
[9] Art. 6º da
Constituição do Estado do Rio Grande do Sul
[10] Art. 37 da
Constituição Federal de 1988
[11] Celso Antonio
Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 7 ed., São Paulo, Malheiros
Editora, p. 68
[12] José Afonso da
Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª. Edição. Malheiros
editora, 1998, p. 645
[13] ADI 113349-01,
julgamento de maio de 2005
[14] Apud Sarmento, idem
[15] Matheus, 22:21
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