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Geólogo e professor aposentado, trabalho este espaço como se participasse da confecção de um imenso tapete persa. Cada blogueiro e cada sitiante vai fazendo o seu pedaço. A minha parte vai contando de mim e de como vejo as coisas. Quando me afasto para ver em perspectiva, aprendo mais de mim, com todas as partes juntas. Cada detalhe é parte de um todo que se reconstitui e se metamorfoseia a cada momento do fazer. Ver, rever, refletir, fazer, pensar, mudar, fazer diferente... Não necessariamente melhor, mas diferente, para refazer e rever e refletir e... Ninguém sabe para onde isso leva, mas sei que não estou parado e que não tenho medo de colaborar com umas quadrículas na tecedura desse multifacetado tapete de incontáveis parceiros tapeceiros mundo afora.

quarta-feira, 28 de março de 2012

O sistema eleitoral estadunidense é a negação da democracia (28mar2012)

Democracia à venda nos EUA

Por Idelber Avelar | Outro Olhar | 24 de março de 2012

A cada temporada eleitoral nos EUA, vários colunistas da mídia brasileira tecem comentários deslumbrados sobre as prévias partidárias e o espetáculo democrático. Mesmo daqueles que criticam a política externa ou a arrogância autocentrada dos EUA, é comum escutar elogios ao funcionamento interno da democracia estadunidense. Nas últimas eleições presidenciais, contei pelo menos dez ocorrências da expressão “uma democracia em funcionamento” nos grandes jornais, revistas ou portais brasileiros. Na verdade, se estudamos o sistema político dos EUA, especialmente sua história em décadas recentes, à luz de todos os atributos que poderíamos associar ao termo “democracia”, vemos que a definição não se sustenta. O movimento Ocupar Wall Street sabe disso e essa é, inclusive, a raiz principal da mobilização. Mas o mesmo jornalismo que alude ao caráter “vago” das reivindicações do OWS não tem, da democracia, uma compreensão menos vaga que “sistema em que os cidadãos comparecem às urnas e escolhem seus representantes” – o que pode parecer uma definição perfeitamente concreta, até que você comece a se perguntar quem qualifica as pessoas como cidadãos, o que significa exatamente escolher e quais são as condições de possibilidade desse ato de escolha. Que seja feito este tipo de pergunta, convenhamos, é esperar demais do nosso jornalismo.

Uma das indagações mais frequentes de quem acompanha de longe o sistema político dos EUA e nota a quase inexistência de diferenças significativas entre a política externa de democratas e republicanos é sobre o porquê de não existirem outras alternativas. Certamente, isso não se deve ao fato de que os eleitores estejam satisfeitos com as duas opções. Pesquisa recente revelou que 86% dos estadunidenses reprovam o Congresso do país em sua totalidade, ou seja, se manifestam insatisfeitos tanto com democratas como com republicanos. Se apenas míseros 14% aprovam a atividade legislativa de ambos os partidos representados no Congresso, por que não emerge um terceiro? (Há uma infinidade de “terceiros partidos” nos EUA, claro, mas nenhum com representação real no Legislativo e chances reais de acesso ao Executivo). Digamos que há, para isso, uma resposta longa e uma curta. A curta é a seguinte: porque é impossível. Não difícil, não improvável, mas impossível, a não ser que se destrua completamente o sistema político existente para a construção de outro. Vamos à resposta longa que fundamenta a curta.

Dois pilares principais sustentam o atual bipartidarismo dos EUA – que é tentador chamar de unipartidarismo, posto que as políticas aplicadas por democratas e republicanos não se diferenciam significativamente, por mais que Obama seja uma pessoa diferente de Romney, e Clinton bastante diverso de Bush. Esses pilares são, por um lado, o papel do dinheiro nas campanhas eleitorais – sustentado por uma jurisprudência recente que basicamente concede estatuto de cidadania ao capital – e, por outro, uma legislação eleitoral que impossibilita a emergência de candidatos que não tenham se comprometido até os ossos com esse mesmo capital. Na prática, ambos os pilares tornam letra morta qualquer definição minimamente completa de demo-cracia, ou seja, governo do povo, governo da plebe, governo dos pobres, da maioria. Passemos a esses detalhes.

Entender o financiamento das campanhas eleitorais nos EUA exige, em primeiro lugar, entender a diferença entre soft money e hard money. Este último é o dinheiro doado diretamente a candidatos. Ele é regulado pela Comissão Federal das Eleições, limitado a pessoas físicas e a um máximo de US$ 2.500 por candidato, e aproximadamente US$ 46.000 para o total de candidatos com os quais o indivíduo deseje contribuir. No universo milionário das campanhas eleitorais de hoje, pode até parecer um limite razoável – até que você entenda o que é o soft money, o dinheiro doado, tanto por pessoas físicas como jurídicas, a partidos políticos, organizações e grupos que não sejam o comitê de campanha do candidato. Dentre esses grupos, os mais decisivos são os Comitês de Ação Política (PACs, na sigla em inglês) e os 527s. Em agosto do ano passado, o jornalista brasileiro Elio Gaspari afirmou que “no atual sistema [brasileiro], os diretores das empresas privadas tiram dinheiro do cofre dos acionistas e jogam-no nas campanhas de seus candidatos. Esse tipo de financiamento poderia ser limitado, ou mesmo proibido, como sucede nos Estados Unidos”. A afirmação é completamente absurda, e se baseia no fato de que empresas não podem, nos EUA, contribuir diretamente com o comitê de campanha de um candidato. Mas isso não quer dizer que elas não façam campanha. A afirmação de Gaspari só é possível graças à total omissão do papel dos PACs e dos 527s nas eleições.

Um Comitê de Ação Política é o nome dado a um grupo de qualquer natureza que se forma para fazer campanha para um candidato ou para defender uma pauta, em geral no Legislativo. O dinheiro doado aos PACs também é limitado mas, como sempre é o caso nos limites ao capital nas campanhas eleitorais dos EUA, trata-se de uma limitação formal, muito mais que real. As contribuições das pessoas físicas aos PACs de um determinado candidato não podem exceder US$ 5.000 ao ano, o que ainda pode parecer um limite razoável – até que você se dê conta de que a legislação permite doações ilimitadas a PACs que façam “gastos independentes”, ou seja, que advoguem contra ou favor de um candidato sem coordenar suas ações com o comitê de campanha do candidato beneficiado. Num mundo em que a informação trafega na velocidade da internet e no qual só existem dois partidos políticos e no máximo dois candidatos competitivos a qualquer cargo, no Executivo ou no Legislativo, essa cláusula basicamente elimina qualquer limitação aos PACs. Também sobre a ação dos próprios Comitês de Ação Política aplica-se a mesma regra: eles só podem contribuir com US$ 5.000 à campanha de cada candidato mas, sempre que o gasto for “independente” (ou seja, não coordenado com o comitê do candidato), eles são ilimitados. As pessoas jurídicas (empresas ou sindicatos, por exemplo) não podem contribuir com os PACs, mas podem financiar seus custos administrativos e levantar dinheiro com executivos, lobistas e acionistas. Não é preciso muita imaginação para perceber como também essa limitação é formal, muito mais que real. Para que se tenha uma ideia, nas eleições de 2008, o PAC Federal da AT&T gastou mais de US$ 3,1 milhões. Mas, mesmo assim, esses limites ainda são “modestos”, até o momento em que introduzimos a figura dos 527s, de papel decisivo nas eleições presidenciais de 2004.

Não há qualquer limite para doações aos 527s. A contrapartida é que eles não podem pedir votos explicitamente para um candidato mas, num sistema bipartidarista, isso simplesmente não é necessário. Tomemos um exemplo, a Swift Boat Veterans for Truth, uma organização 527 que investiu dezenas de milhões de dólares em comerciais de televisão que caluniavam o candidato democrata à Presidência em 2004, John Kerry, dizendo que ele havia colaborado com o inimigo na Guerra do Vietnã. Os comerciais manipulavam as posições antiguerra abraçadas, depois da volta ao país, por um militar condecorado, em favor, evidentemente, do seu único adversário, George W. Bush (que, aliás, escapou da guerra por um estratagema montado por seu pai, que interveio junto às Forças Armadas para que ele ficasse pilotando aviõezinhos no Alabama). O efeito dos comerciais foi devastador, decisivo para o resultado da eleição. Os Swift Boaters não precisavam pedir votos para Bush para que soubéssemos que trabalhavam para ele. Nas últimas eleições presidenciais, alguns dos maiores 527s gastaram as seguintes quantias: a Associação dos Governadores Republicanos gastou US$ 131 milhões. A Associação dos Governadores Democratas gastou pouco menos da metade, US$ 64 milhões. A Citizens for Strength and Security [“Cidadãos pela Força e Segurança”, não é um lindo nome?], financiada pelo lobby das armas, levantou quase US$ 7,2 milhões. Etc. Lembre-se: toda essa grana pode vir de contribuições de empresas, sem qualquer limitação.

Mas a brincadeira não termina aí. Uma decisão recente e já histórica da Corte Suprema, no caso Citizens United vs. Federal Election Commission, acaba de sepultar qualquer veleidade democrática que possa ter o sistema eleitoral dos EUA ante o poder do dinheiro. A espantosa decisão, tomada por 5 a 4, estabeleceu que seria uma violação da Primeira Emenda (a famosa, que proíbe a promulgação de leis contra a liberdade de expressão) limitar os gastos de corporações de qualquer tipo em campanhas eleitorais. Suas contribuições a comitês de campanha e PACs ainda estão reguladas pelas regras descritas acima. Mas, em nome próprio, as empresas já podem (de certa forma, sempre puderam, mas agora o fazem sancionadas explicitamente por uma decisão da Suprema Corte) gastar o quanto quiserem para promover ou atacar quaisquer candidatos. A decisão, conhecida nos EUA como a que sacramentou o status de personhood para as corporações (ou seja, deu a elas a condição de pessoa humana), trata o poder do dinheiro de comprar uma eleição como uma questão de liberdade de expressão. O ministro John Paul Stevens, não exatamente um juiz de esquerda, redigiu a opinião da minoria em termos eloquentes: “a opinião desta Corte é uma rejeição do senso comum do povo americano, que desde a fundação reconheceu a necessidade de impedir que as corporações sabotem a autogovernança, e que desde os dias de Theodore Roosevelt tem lutado contra o claríssimo potencial corruptor da politicagem eleitoral corporativa. É uma estranha hora para se repudiar esse senso comum. A democracia americana é imperfeita, mas pouquíssimos além da maioria desta Corte pensariam que um de seus defeitos é a escassez de dinheiro de empresas na política”. O New York Times, não exatamente um jornal comunista, afirmou em editorial: “a Suprema Corte acaba de entregar aos lobistas mais uma arma. Um lobista pode agora dizer a qualquer político eleito: ‘se você votar errado, minha empresa, meu sindicato ou meu grupo de interesse gastará quantias ilimitadas de dinheiro fazendo campanha explícita contra a sua reeleição’”. A decisão da Suprema Corte no caso Citizens United vs. FEC confere ao capital um enorme poder de chantagem, já que qualquer político sabe que uma barragem de comerciais negativos na televisão, financiados com dinheiro ilimitado, pode sepultar uma candidatura, mesmo a de um deputado ou senador favorito à reeleição.

Considerando-se a combinação entre todos os elementos descritos acima, o quadro é, na prática, aquele que descreve Michael Barone, ex-editor do Yale Law Journal e do Harvard Crimson: “Uma viagem a qualquer capital estadual – por exemplo, Harrisburg, Pennsylvania, ou Springfield, Illinois – permite descobrir que tal ou qual pessoa na Califórnia doou US$ 1.000. Mas permanecerá escondido aquilo que os proprietários do fundo nacional de soft money dos partidos sabem muito bem, ou seja, que esse doador da Califórnia também lhes deu um cheque de US$ 100 mil. Em outras palavras, aqueles que se beneficiam do dinheiro sabem de onde ele veio, mas o público está efetivamente barrado de sabê-lo”. Limites estritos para a cidadania, liberdade completa de ação para o capital.


Acesso à cédula

Não surpreende, portanto, que democratas e republicanos se diferenciem tão pouco. O próprio poder do dinheiro já é um enorme impedimento à emergência de outras alternativas, mas a homogeneidade é ainda mais reforçada quando se consideram os obstáculos impostos pela legislação eleitoral, especialmente o acesso à cédula. Toda a regulamentação do acesso dos candidatos à cédula, mesmo nas eleições federais, é prerrogativa dos estados. Um passeio pelas legislações estaduais mostra por que é praticamente impossível que um terceiro partido ameace a hegemonia da plutocracia democrata e republicana. Na Geórgia, qualquer terceiro partido ou candidato independente só poderá aceder à cédula caso apresente uma petição com as assinaturas de 5% dos eleitores aptos a votar no estado. Quando nos lembramos de que George W. Bush se elegeu presidente dos EUA com os votos de menos de 20% dos eleitores aptos a votar (quase metade deles ficou em casa), formamos uma ideia do que é esse requisito.

Desde 1943, não há candidatos independentes ou de terceiros partidos nas eleições para a Câmara dos Deputados na Geórgia. Na Flórida, a taxa de registro de uma candidatura independente é 7% do salário anual do cargo (uma soma considerável de dinheiro) e o número de assinaturas exigidas é 196 mil. Na draconiana legislação da Virgínia Ocidental, além de a coleta de assinaturas para candidatos independentes ou de terceiros partidos ter de ser feita antes das primárias republicanas e democratas, o eleitor que assinar uma dessas petições está proibido de votar em qualquer uma delas. É um crime eleitoral coletar assinaturas sem informar ao eleitor “se você assinar minha petição, não poderá votar nas primárias”. O resultado é que o candidato independente ou de terceiro partido não tem certeza se cumpriu o requisito, pois não sabe quantas assinaturas serão invalidadas pela participação dos respectivos eleitores nas primárias. Desde 1920, não há um terceiro partido que consiga colocar candidatos nas cédulas de sequer metade dos distritos do país. Democracia?

Quando se analisam essas limitações à emergência de qualquer alternativa à plutocracia democrata e republicana no contexto da gigantesca força do dinheiro que descrevíamos acima, fica claro por que os estadunidenses, apesar de reprovarem em níveis recordes os dois partidos, não têm como mudar o sistema dominado por eles, a não ser por meio de movimentos completamente externos a essas estruturas. Torna-se mais compreensível o fato de que, mesmo quando há terceiros candidatos minimamente viáveis (como, mais recentemente, Ross Perot em 1992), eles tendem a ser multimilionários que arcam quase sozinhos com os enormes custos da campanha, e, portanto, tendem a representar os mesmos setores sociais já representados no sistema plutocrático bipartidarista. Fica mais clara a revolta do Ocupar Wall Street.

Considerando todo o dito acima, como é possível ter qualquer ideia do que significa a palavra grega demos e continuar falando em democracia para se referir ao sistema político dos EUA?  Em que planeta vivem nove de cada dez jornalistas da grande mídia brasileira, que apresentam esse sistema como uma espécie de modelo ao qual o Brasil deveria aspirar? “Democracia em funcionamento” para quem, cara-pálida?

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