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Geólogo e professor aposentado, trabalho este espaço como se participasse da confecção de um imenso tapete persa. Cada blogueiro e cada sitiante vai fazendo o seu pedaço. A minha parte vai contando de mim e de como vejo as coisas. Quando me afasto para ver em perspectiva, aprendo mais de mim, com todas as partes juntas. Cada detalhe é parte de um todo que se reconstitui e se metamorfoseia a cada momento do fazer. Ver, rever, refletir, fazer, pensar, mudar, fazer diferente... Não necessariamente melhor, mas diferente, para refazer e rever e refletir e... Ninguém sabe para onde isso leva, mas sei que não estou parado e que não tenho medo de colaborar com umas quadrículas na tecedura desse multifacetado tapete de incontáveis parceiros tapeceiros mundo afora.

domingo, 31 de julho de 2011

É preciso conter os efeitos corrosivos do capitalismo (31jul2011)

Artigo publicado no sítio Maria Frô em 28 de julho de 2011.

Neoliberalismo: a maior ameaça aos valores ocidentais

Por Tarak Barkawi
Al-Jazeera, Catar
Tradução: Vila Vudu
27/7/2011

O estilo paranóico de fazer política frequentemente constrói as mais improváveis alianças, que se converteriam em terríveis ameaças, a serem destruídas por todos os meios necessários.

Em Choque de Civilizações, Samuel Huntington inventou um oriente amalgamado – uma aliança entre potências “confucianas” e “islâmicas” – que desafiariam o ocidente, para arrebatar-lhe o cetro da dominação mundial. Muitos jihadis temem a aliança de Cruzados entre judeus e cristãos. Esquecem que, há bem pouco tempo, em termos históricos, populações cristãs foram empenhados carrascos dos judeus.

Agora, Anders Breivik invocou um improvável eixo de marxismo, multiculturalismo e islamismo que, unidos, ameaçariam colonizar a Europa. Dado que vê o multiculturalismo como conspiração, Breivik conseguiu misturar velhos discursos fascistas numa só nova conspiração de comunistas, judeus e muçulmanos.

Como outros terroristas que matam em nome de seitas islâmicas, Breivik quer massacrar pessoas em nome de uma pureza inventada. A Noruega moderna só se tornou estado soberano em 1905; é retardatária, pode-se dizer, na comunidade das nações. No plano imaginário, é resultado da imaginação de vikings, exploradores do Ártico e assistentes humanitários de todo o planeta.

Se se considera a rapidez com que a literatura jihadi é descartada como loucuras, chama a atenção o quanto tantos estão levando a sério o mix ideológico ensandecido de Breivik. É fenômeno muito preocupante as análises que dizem que se deveriam enfrentar com mais atenção “as causas radicais” da loucura de Breivik – a imigração e a diferença cultural. Se assim não for feito, as sociedades europeias perderão a coesão social, para usar eufemismo muito recorrente para a “coesão do Volk [povo]”.

Se se acredita nisso, até se poderia perdoar a extrema direita que conclua que o terrorismo funciona. Quanto ao resto da humanidade, que hoje assiste a terroristas que se reimaginam, dos dois lados de batalhas obscuras de um passado mítico, podemos bem sentir saudades dos insurgentes e revolucionários de antigamente e suas guerrilhas anticoloniais. Esses, pelo menos, sabiam oferecer argumentos plausíveis a favor de suas lutas.

Para garantir-se, taticamente falando, Breivik construiu uma reflexão, enquanto preparava sua operação. Mas, diferente de muitos jihadis, faltou-lhe a indispensável coragem para enfrentar inimigos armados como ele, e para oferecer a própria vida – além de vidas alheias – à causa em que crê. Apesar disso, quis que sua rápida aparição em cena tivesse algum tipo de solenidade e uniforme militares.

Uniformes bem talhados por alfaiates – essa aberração da diferença cultural – e um desejo de pureza racial são itens que nunca faltam ao misticismo fascista. Como na ideologia jihadi, são precisamente os elementos não racionais do fascismo que lhe dão potência emocional e, portanto, política. Porque o que Breivik e outros veem como ameaçada no ocidente é a fonte do significado, os valores essenciais, que eles associam à comunhão com um povo purificado.

Dado que o ocidente não enfrenta, obviamente, nenhuma ameaça existencial dessa escala e de tão amplo significado, é preciso inventar uma. Nesse preciso ponto, a improvável aliança de partidos de esquerda e o Islã cumpre sua função, com uma pressuposta invasão em massa de muçulmanos para colonizar a Europa. Na população da Noruega, há menos de 3% de muçulmanos; na Grã-Bretanha, menos de 5%. Apesar disso, o medo fantasmático de “perder” a Europa para o Islã anima muitos direitistas; é parte da política eleitoral dominante na Europa e há muito tempo é item sempre presente nos discursos da direita nos EUA.

Nessa visão de perigo ameaçador, o multiculturalismo tem papel chave. Muitos terão percebido a estranha referência, nos escritos de Breivik, a “marxistas culturais”, gente que eu, pessoalmente, só vi, e sempre em grupos pequenos, em departamentos de grandes universidades e em bares frequentados por universitários recém-formados. Breivik faz referência à Escola de Frankfurt, um grupo de intelectuais judeus alemães que trocaram Hitler pelos confortos ocidentais cosmopolitas de New York.

A ideia é que “judeus” teriam encorajado a mestiçagem cultural no ocidente, comprometendo assim, fatalmente, a pureza do ocidente e, portanto, os valores ocidentais, ao mesmo tempo em que muçulmanos e judeus preservariam as respectivas força e identidade culturais. A Europa, pois, declararia “independência” e iniciaria o combate contra as hordas muçulmano-judeu-marxistas, a começar, parece, por matar os mais jovens.

Pode-se assumir que Breivik confundiu as fantasias dos jogos de computador de que é adepto – seu avatar é uma loura de busto avantajado, codinome “Conservadorismo” – e análise política. Mas o que realmente assusta é que o núcleo mais duro de sua visão do multiculturalismo como ameaça ao ocidente aparece, idêntico, também nos grandes partidos políticos na França, na Grã-Bretanha, na Alemanha e na Itália, dentre outros países. Por isso, precisamente, há alto risco de que a matança covarde de Breivik alcance alguns de seus objetivos. A imigração, dirá alguém, desequilibrou a homogeneidade do “nosso” povo. Já se ouve, aliás, precisamente isso, em todas as potências ocidentais.


Cale a boca, obedeça e colabore

A ironia disso tudo, é que o ocidente já nos impôs o império em escala global, extraindo sua força cultural, econômica e política das interconexões com todas as partes do mundo. As Cosmópolis de New York, Londres e Paris – um ocidente ‘moreno’, não mais ‘branco’ – são vitrines muito mais perfeitas de um ocidente cheio de arrogância, poder e confiança em seus valores, que qualquer purificação fantasiosa construída em campos de trabalhos forçados e fronteiras fechadas.

Mas… o que estaria corroendo os valores ocidentais?

Essa foi uma das perguntas que mobilizaram a Escola de Frankfurt e os que a influenciaram. Dedicaram-se a pensar sobre a interação entre capitalismo e cultura. Apontaram os modos pelos quais o capitalismo, progressivamente, converteu tudo em produto que pudesse ser comprado ou vendido, medindo os valores só pelo valor mais baixo. Lentamente, mas sem jamais parar, essas medições passaram a aplicar-se também aos valores culturais no cerne da sociedade. Até o tempo, como nos ensinou Benjamin Franklin, é dinheiro, doutrina que horrorizou Max Weber, que acusou a mentalidade capitalista de ser uma “gaiola de ferro” sem “espírito”.

Vejam-se, por exemplo, os modos pelos quais as grandes vocações profissionais do ocidente – advogados, jornalistas, professores-doutores, médicos – foram cooptados e corrompidos pelo pensamento de melhor preço de compra/venda. Dinheiro e “eficiência” são os valores pelos quais nos norteamos e pelos quais damos a vida; não a lei, a verdade ou a saúde. Os alunos são imaginados como “consumidores”; os cidadãos, como “acionistas”. As associações profissionais defendem pisos salariais, não qualquer dos valores que elas existem para manifestar. Alunos formados pelas universidades de elite do ocidente, imbuídos do que aprenderam de nossos maiores pensadores, são mandados trabalhar em empresas como News International. Ali aprendem a calar a boca, obedecer e colaborar no serviço imundo da exploração em busca do lucro, serviço pelo qual são bem recompensados, pelo menos em termos financeiros.

Graças em parte à força das garras do poder incorporado na imprensa e nos grandes partidos políticos, poucos hoje, no ocidente, conseguem imaginar qualquer outra política que não seja a política da ‘grande finança’. Nos EUA, e cada dia mais na Europa, a diferença de renda entre os pobres e os ricos aproxima-se da que se vê em repúblicas-de-banana. Os mais pobres são mandados arcar sob o peso de uma crise financeira criada por banqueiros. Os ricos, nos EUA, despacham os filhos para acampamentos de verão a bordo de jatos privados, em país no qual a taxa de desemprego já ultrapassou 15%.

O neoliberalismo só fez acelerar esses processos no coração da sociedade capitalista. Aqui, sim, se vê ameaça muito mais grave aos valores ocidentais e à “coesão social”, que qualquer medo inventado por fascistas lunáticos. O mais grave é que essa ameaça vem de dentro, não de fora.

Na linha de frente da resistência contra essa ameaça, isso sim, lutam partidos como o Partido Trabalhista da Noruega – alvo que Breivik escolheu.

É preciso conter os efeitos corrosivos do capitalismo e, só assim, se poderá pensar em garantir alguma sobrevivência aos valores ocidentais humanos.

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