Os dispositivos de poder na América Latina não são apenas econômicos mas também raciais
As recentes constituições da Bolívia e do Equador incorporaram um conceito oriundo dos movimentos sociais indígenas e pouco conhecido no Brasil: o Bem Viver. Essa ideia, no entanto, tem muitas variações, alternando entre a defesa de uma outra relação com a natureza e a crítica ao modelo de desenvolvimento. Nesta entrevista, o economista Pablo Dávalos, que foi vice-ministro da economia do Equador e coordenador do Grupo de Trabalho ‘Movimentos Indígenas na América Latina” da Clacso (Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais), apresenta uma definição mais precisa e radical, associada, sobretudo, à superação da noção burguesa moderna de progresso. Sem abandonar as contribuições práticas e teóricas do socialismo, ele defende que a esquerda latino-americana precisa compreender as questões raciais como mecanismos específicos de dominação.
Dávalos é também professor visitante da Universidade Pierre Mendès-France e autor de vários livros, entre eles, ‘La democracia disciplinaria. El proyecto posneoliberal para América Latina’.
O que significa o conceito de ‘bem viver’?
A teoria do Bem Viver (Sumak Kawsay ou Sumak Qamaña) nasceu da prática histórica e da resistência dos povos indígenas da América Latina. É uma proposta feita pelos movimentos indígenas para todo o conjunto da sociedade. Quer ser uma alternativa à ideia moderna do ‘progresso’, e pretende colocar um novo contexto para as lutas emancipatórias dos movimentos sociais. A noção do Bem Viver propõe abandonar a ideia de progresso porque considera que essa noção é discriminatória e violenta. Ela desconsidera a relação dos seres humanos com a natureza; além disso pressupõe um tempo linear e um espaço homogêneo que não correspondem ao desenvolvimento histórico das sociedades. A ideia de progresso foi uma criação da burguesia em seu processo de emancipação política que agora está demonstrando seus limites. Portanto, os povos indígenas propõem situar o confronto com o capitalismo mais além dos seus mecanismos de exploração e querem demonstrar que o marco civilizatório no qual ele está inscrito, quer dizer, a modernidade, também tem que ser transformado radicalmente. A ideia do Bem Viver está presente em quase todos os povos indígenas de Abya Yala (ou América Latina). Seus princípios são relacionalidade, complementaridade, reciprocidade e correspondência. Reconhece que as visões de tempo e espaço são complexas, que as sociedades estão atravessadas pela diversidade e que esta deve ser respeitada. Da mesma maneira que a ideologia do progresso não se apresentou como uma reivindicação da burguesia, mas como um ethos da história, também o Bem Viver, que quer questionar a fundo a modernidade e seus conceitos de base, não é somente uma reivindicação dos indígenas nem para os indígenas. O Bem Viver é, no momento, a alternativa mais importante que se tem para sair do capitalismo e da modernidade.
Para esses movimentos sociais, a alternativa ao modelo de desenvolvimento capitalista é o socialismo ou há outros caminhos?
Os movimentos sociais da América Latina reconhecem a contribuição do discurso e da práxis do socialismo para a libertação e a emancipação humanas. Reconhecem também a pertinência dos marcos analíticos desenvolvidos pela teoria do socialismo científico para compreender o capitalismo e suas contradições. Porém consideram que é necessário avançar um passo além do socialismo e da crítica realizada pela economia política ao capitalismo. Isso se deve ao reconhecimento de que as estratégias e os dispositivos de poder na América Latina não são apenas econômicos mas também raciais. Os indígenas não apenas são explorados como também invisibilizados ontologicamente. Essa invisibilização ontológica se produz também em relação às mulheres e aos povos afros. Os mecanismos de poder, na América Latina, foram além da teoria tradicional da mais-valia como exploração da força de trabalho. É necessária, por consequência, uma teoria crítica que compreenda os mecanismos de discriminação, exclusão e violência apoiados nas ideias de raça, etnia ou gênero. Contudo, as ciências sociais, em especial as norte-americanas, através de seus ‘estudos culturais’, quiseram converter um processo de luta teórica em uma disputa antropológica. Portanto, os movimentos indígenas são críticos à modernidade e às suas formas de conhecer a realidade. Então, é necessário algo mais do que a libertação da exploração humana para a verdadeira emancipação. O problema é que a esquerda política da América Latina, demasiado identificada com as suas raízes europeias, ainda não compreende que é necessário ir além da crítica à economia política do capitalismo e, consequentemente, além das propostas do socialismo como uma ideia de progresso individualizado, com seres humanos fragmentados de sua relação com a natureza e sua própria história. Os movimentos indígenas crêem que é necessário enriquecer o discurso emancipatório e propõem uma crítica radical à modernidade e suas idéias de base e, ao mesmo tempo, propõem uma alternativa com a ideia de Bem Viver.
Qual a diferença no grau das conquistas desses movimentos sociais entre os países do continente?
Os países mais adiantados são Equador e Bolívia, que conquistaram o estatuto de Estados Plurinacionais e incorporaram a noção de Bem Viver nos seus textos constitucionais. Vários movimentos indígenas, como os povos mapuches no Chile, estão resistindo ao neoliberalismo e defendendo seus territórios, propondo o estatuto de Estado Plurinacional e o Bem Viver. Contudo, a declaração de plurinacionalidade do Estado ou a incorporação do conceito de Bem Viver na Constituição não garantem que as relações de poder sustentadas na exploração, na discriminação e na exclusão tenham terminado ou estejam por terminar. Tampouco significam que a acumulação do capital parou. Bem ao contrário: os governos da Bolívia e do Equador, apesar de seu discurso de esquerda e de sua relação com os movimentos sociais, são tão capitalistas e neoliberais como os governos precedentes desses países. Portanto, os movimentos indígenas consideram que a saída do capitalismo e da modernidade será uma tarefa árdua e que englobará o conjunto da sociedade humana. Por agora, sua estratégia está concentrada em defender-se da acumulação capitalista, que busca privatizar seus territórios e criminalizar os povos indígenas que resistem à privatização territorial. No entanto, o debate político começou a mudar no continente e há cada vez mais movimentos sociais que reclamam mais democracia e que veem no Bem Viver uma alternativa ao capitalismo e no Estado Plurinacional, uma possibilidade de descolonizar a democracia e a política.
Uma crítica comum da esquerda é que o foco nas reivindicações específicas pode fazer que se perca de vista a dimensão de classe. Como os movimentos indígenas, com seu enfoque nos temas ecológicos, têm tratado isso?
A exploração de classe existe. As relações de poder baseadas nos mecanismos de opressão econômica são inevitáveis. Os movimentos sociais e os movimentos indígenas jamais negaram a exploração do trabalho feita pela burguesia. Tampouco negaram a pertinência da noção de luta de classes. O que os movimentos indígenas salientam é que a exploração do trabalho tem uma espécie de sombra que não é iluminada pela economia política: a discriminação e a opressão raciais. Uma coisa é ser trabalhador ou trabalhadora explorada pelo capital, mas outra coisa, mais densa, se você quiser, é ser desconhecido no nível ontológico. Os índios, os afros, as mulheres sofrem essa discriminação, que chegou a invisibilizá-los. Somente são visíveis quando são explorados mas não quando são negados, excluídos. E não se trata de uma questão pessoal de um povo determinado, mas de uma prática política que tende a desconhecer as alteridades. Por exemplo, os saberes ancestrais indígenas não fazem parte de nenhum currículo acadêmico de nenhuma universidade oficial. As instituições ancestrais indígenas não são reconhecidas por nenhum código jurídico, quer dizer, elas não existem. Contra essa negação, contra essa invibilização têm lutado os povos indígenas e reclamado a esquerda política que além da exploração de classe existe uma realidade de exclusão, violência e que faz parte dos dispositivos de poder. Mas há outra forma mais perversa de invisibilização: a banalização por sua conversão em processos antropológicos. Assim, acredita-se que o Bem Viver é uma questão dos povos indígenas e não se considera que esta ideia possa questionar o progresso, o desenvolvimento e o crescimento econômico, porque ela é considerada uma espécie de atraso ecologista de povos com uma identidade própria, ideia que deve ser respeitada mas não considerada como um discurso próprio e alternativo aos discursos dominantes. Acredita-se que a relação entre os indígenas e a natureza é mais uma variante do ecologismo e não se compreende a verdadeira dimensão que tem sua crítica e sua proposta.
Em países como Bolivia e Equador, a população indígena se confunde com a classe trabalhadora?
Os povos indígenas são a classe trabalhadora. Foi a administração racista do poder e dos dispositivos de cominação sustentados na ideia de raça que geraram essa ruptura entre classe e povos indígenas. Os trabalhadores, operários e operárias do Equador e da Bolivia, têm raízes indígenas, são parte de uma história e de uma sociedade que tem instituições ancestrais e que se formou antes da revolução industrial e do capitalismo. Esses trabalhadores e trabalhadores, que têm raízes indígenas, têm tentado manter sua identidade cultural, suas instituições, suas práticas ancestrais. Quando os processos neoliberais de desindustrialização e reprimarização da economia levaram muitos trabalhadores ao desemprego, eles regressaram às suas comunidades. Era sua forma de se defender da acumulação capitalista. Então, os seres humanos não são trabalhadores num sentido estrito, mas sim circunstancial. Para além do seu pertencimento ao mundo do trabalho no sentido burguês do termo, são parte de uma sociedade que, no caso do Equador e da Bolívia, tem instituições ancestrais que sobreviveram à modernidade e ao capitalismo. Esses trabalhadores conseguiram sobreviver à opressão capitalista precisamente por causa dessas instituições ancestrais e que não são reconhecidas pela modernidade nem pelo capitalismo.
As políticas neoliberais e os organismos internacionais tiveram interferência direta nas questões indígenas na América Latina?
As políticas de ajuste do FMI produziram um retrocesso histórico na América Latina e transformaram os padrões de acumulação do capital. Essas políticas de ajuste mudaram a burguesia latino-americana. Converteram-na em rentista e especuladora, em parceira menor da acumulação em escala global. Essas políticas de ajuste contribuíram para deslocar os modelos de violência política do Estado para o mercado. Os movimentos sociais resistiram ao FMI por meio de mobilizações contra as privatizações, a desregulação, a abertura econômica. Os movimentos sociais tiveram uma grande flexibilidade para confrontar o FMI, uma flexibilidade que não tiveram os sindicatos e partidos de esquerda, muito apegados às ideias do trabalho e do progresso. Nos anos 90, junto com o FMI, o Banco Mundial desenvolveu uma estratégia de intervenção social através de projetos de reforma setorial, a fim de consolidar a privatização do Estado e a desmobilização social. Com o propósito de controlar as respostas sociais à privatização do Estado, o Banco Mundial criou projetos específicos de intervenção nos movimentos indígenas da região. No Equador, criou-se o Projeto Prodepine, cujo propósito era destruir a capacidade organizativa do movimento indígena equatoriano. No Chile, criou-se o Projeto Orígenes e, no México, o Projeto Oportunidades. Com o propósito de destruir politicamente o movimento indígena, o Banco Mundial chegou a criar a teoria do etnodesenvolvimento. Mas o Banco Mundial nunca atuou sozinho. Conjuntamente com ele, atuaram as organizações do sistema das Nações Unidas, como o Pnud, a Unicef, a Unesco, a FAO, a OMS-OPS, entre outras. E também a cooperação internacional para o desenvolvimento, como a cooperação espanhola (AECI), a cooperação alemã (GTZ), entre outras. Esta estratégia de intervenção na sociedade e nos movimentos indígenas está presente até hoje.
A afirmação de uma identidade étnica e cultural é a negação de uma identidade nacional?
Não existe identidade nacional. Isso é uma criação das burguesias em seu processo de emancipação política. Os Estados-nação, na América Latina, foram criados ex nihilo. Foram uma contradição da história: criaram-se Estados-nação modernos em sociedades que não eram modernas. As elites crioulas tiveram que se reinventar na medida em que os Estados-nação que se formavam nos processos de independência as obrigavam a uma modernização intensiva. Mas essas elites nunca se modernizaram. Daí esse ethos barroco que atravessa e constitui a América Latina. Esses Estados-nação foram construídos sobre sociedades preexistentes, mas não as consideraram. Esqueceram a história e fizeram tábula rasa do passado. A identidade nacional foi parte do processo de construção da hegemonia política necessária à burguesia para a consolidação de seus mecanismos e dispositivos de dominação. A conformação dos Estados-nação implicou uma guerra de extermínio contra os povos indígenas que nele habitavam. A ideia de nação se consolidou com as políticas de industrialização de meados do século XX, mas com o neoliberalismo e a globalização as idéias de nação e identidade nacional se tornam mais uma condição de possibilidade do capital financeiro global. São muito funcionais quando se trata de maquiagens, de tratados de livre comércio ou de controle geopolítico, mas não são nada funcionais quando se trata de liberalizar os mercados. A globalização converte em relativa a ideia de identidade nacional. As identidades étnicas, no entanto, não têm nada a ver com a identidade nacional: são a evidência histórica de que o Estado-nação moderno se impôs sobre as sociedades que tinham uma história preexistente. Se essas sociedades mantiveram intacta sua identidade foi porque souberam resistir à violência do Estado-nação moderno e à sua política de tábula rasa.
Como a organização local, que é a base dos movimentos indígenas, pode se tornar universal?
A ideia de universalidade é uma ideia medieval que se transmitiu à modernidade pela filosofia e pela epistemologia. Para a escolástica medieval, a ideia da Divindade era princípio e fim do mundo, por consequência, nada podia existir fora dela e tudo podia ser explicado a partir dessa ideia de Divindade. A burguesia retoma essas condições do saber medieval para situar nelas as posibilidades do seu próprio conhecimento e da sua dominação de classe. Para a burguesia, as prescrições do seu próprio saber são também universais e necessárias, tal como eram na Idade Média. Não se pode entender nada fora dessas prescrições, tudo adquire racionalidade a partir dessas prescrições. É dessa posição de uma razão totalitária que se assume que a razão moderna é também universal e necessária. Mas não se trata apenas da razão moderna, mas também de seus dispositivos de poder. O progresso, por exemplo, é considerado um conceito universal e necessário. O mesmo vale para o desenvolvimento e o crescimento econômico. Eles não são considerados como produtos ideológicos de uma classe social que também controla as condições epistemológicas do saber. Os povos indígenas, ao contrário, não consideram que suas propostas sejam nem universais nem necessárias. Se o discurso do Bem Viver quer ser uma alternativa ao discurso do progresso não pode compartilhar seus pressupostos e prescrições. O Bem viver denuncia esses desvio metafísico de uma razão moderna universalizante e propõe o reconhecimento das diversidades que constituem as sociedades. O Bem Viver pretende desalojar o discurso do progresso mas não para se constituir como um discurso dominante e que legitime novas relações de poder, e sim para abrir um espaço à discussão de todas as formas possíveis de sociedade em um contexto de debate democrático.
Na perspectiva da emancipação humana, como se articulam as conquistas civilizatórias e a defesa da tradição?
A antinomia entre desenvolvimento e tradição, que é parte das modernas teorias do desenvolvimento econômico, integra um debate entre civilização e barbárie que se inscreve no interior da modernidade. No debate criado e proposto pela burguesia, em certo sentido para se contrapor às críticas do romantismo, apresenta-se o passado como uma etapa a ser superada. Nesse sentido, converte o tempo em linear e o espaço em homogêneo. Nesse espaço linear e homogêneo, a burguesia situa a ideia de progresso e o atribui à tecnologia. Em seus primeiros momentos, em especial durante a Revolução Industrial, a burguesia acreditou na tecnologia e em seus poderes mágicos. E essa crença é tão forte que se criou a ideologia de que não há problema humano que não possa ser resolvido pela tecnologia. Acredita-se que os avanços tecnológicos realizados desde a modernidade não têm precedente na história humana e que eles se devem especificamente à razão moderna e ao capitalismo. Contudo, desde o início do capitalismo houve uma crítica forte a esse desvio de converter os problemas sociais e humanos em problemas técnicos e também uma crítica ao fato de a burguesia ter controlado a produção do conhecimento em benefício próprio. Desde a chamada crítica reacionária (como Bonald, De Maistre ou Burke), até a crítica ao marxismo e seu conceito de ‘forças produtivas’, houve um forte debate sobre a produção científico-tecnológica e a modernização como superação do passado (a tradição). Mas a teoria do Bem Viver considera que toda essa reflexão na realidade é ideológica e corresponde aos dispositivos de controle, poder e dominação da burguesia. A modernização como um dever ser social não existe, a não ser que se considerem os processos de acumulação do capital e suas dinâmicas de concentração e centralização como formas de modernização. A modernização é um processo violento que implica destruição e barbárie. O apelo à tradição é um mecanismo de defesa das sociedades às tentativas de modernização e mercantilização. Talvez o estudo mais importante realizado a esse respeito seja o texto de Karl Polanyi, "A grande transformação". Os mercados e a modernização são uma ameaça para as sociedades. Geralmente conduzem à destruição, à violência e à guerra. As sociedades se agarram ao seu passado porque consideram que o presente é uma ameaça. E o presente é a modernidade, o capitalismo, o mercado. A teoria do Bem Viver considera que a verdadeira ameaça não é uma falsa relação modernidade/tradição, mas aquela entre o mercado e a sociedade. Se se quer eliminar o poder da burguesia e reconstruir as sociedades, é necessário menos mercado, e menos mercado significa menos modernidade. Talvez dessa forma se possa arrebatar da burguesia o controle sobre a produção do conhecimento e utilizar a ciência e a tecnologia para a emancipação humana, não para fortalecer a taxa de lucro empresarial.
Como os movimentos sociais indígenas vêm articulando democracia participativa e representativa nos diversos países da América Latina?
Os movimentos sociais da América Latina representam uma reinvenção da democracia. Propuseram temas diferentes, como aqueles de ‘mandar obedecendo’ ou ‘tudo para todos, nada para nós’. Propuseram o Estado Plurinacional para descolonizar a democracia e devolver-lhe seu sentido original, de governo do povo e para o povo. Propuseram o Bem Viver para evitar a destruição provocada pelos mercados, o capitalismo e a modernidade. Essa reinvenção da democracia significou a reinvenção das utopias e novos horizontes de possíveis sociais. Os movimentos indígenas sabem que os indivíduos isolados são uma invenção da modernidade e do capitalismo. Nós, seres humanos, sempre vivemos em sociedade, pertencemos a ela e todas as ações que realizamos têm conseqüências sociais. A taxa de lucro rompe com a sociedade. As preferências do consumidor fragmentam e rasgam a sociedade. A democracia representativa e a regra da maioria instrumentalizam a democracia em função do poder da burguesia. Portanto, é necessário sair dessa lógica e buscar novas alternativas. A democracia dos movimentos indígenas, por definição, é participativa e direta. Parece muito com a democracia da ágora grega, mas sem exclusões.
Costumamos falar de ‘povos indígenas’ em geral. Existe uma identidade indígena na América Latina? Isso inclui o Brasil?
Claro que o Brasil faz parte dessas novas dinâmicas de emancipação. Não se precisa ser indígena para compreender que o modelo capitalista e a modernidade estão levando o planeta e toda a sociedade humana a uma hecatombe. Mas é preciso sensibilidade para pensar que outro mundo é possível. De todas as alternativas existentes, o Bem Viver apresenta uma forma diferente de relacionamento entre os seres humanos, as sociedades e a natureza. O que os povos indígenas têm não é uma identidade, mas um estatuto de diferença racial em relação à modernidade. Não está em jogo a identidade de um povo determinado, mas a forma como a modernidade e o capitalismo tratam as alteridades radicais. Se elas são invisibilizadas ontologicamente, isso significa que esse sistema social está doente, com graves problemas. Da mesma forma, quando tenta inseri-las no seu projeto, quer dizer, modernizá-las. Contudo, as diferenças radicais não são exclusivas dos povos indígenas. As mulheres são também uma diferença radical. Se o sistema não as reconhece como tal, significa que a estrutura do poder é patriarcal e machista. Por isso a luta das mulheres contra esse sistema é também a luta dos povos indígenas. Mas não são somente as mulheres, estão também nessa situação as identidades sexuais diferentes. Quer dizer, a sociedade está atravessada por diferenças radicais e é preciso não apenas reconhecê-las mas fazer que elas sejam parte de toda proposta de emancipação, porque, definitivamente, não se trata da emancipação de um grupo social determinado, mas de toda a sociedade.
O que se quer dizer com a ideia de interculturalidade?
A interculturalidade significa reconhecermos as diferenças que nos conformam e nos constituem de forma atávica porque somos seres sociais e históricos, aceitarmos essas diferenças e construirmos uma sociedade a partir dessas diferenças. A interculturalidade cria espaços de diálogo para que O Mesmo e O Outro possam comprender-se como parte da infinita diversidade do ser humano. A interculturalidade significa aprender com o Outro. Saber do Outro. Saber que esse Outro, definitivamente, somos nós mesmos.
*Entrevista realizada por Cátia Guimarães e Raquel Junia para o nº 18 da Revista Poli - saúde, educação e trabalho, de julho/agosto de 2011.
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