Nostradamus (Eduardo Dusek)
Eduardo Dusek
Eduardo Dusek
Vem do sítio Carta Maior, publicado em 5 de agosto de 2011.
Colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: é a treva!
“Não, não é um quadro com o de 1929. Aquele teve um ápice, com recidivas, mas ensejou um desdobramento político que inauguraria um outro ciclo, com Roosevelt e o New Deal. O que passamos agora é distinto de tudo isso”, diz a economista Maria da Conceição Tavares, em entrevista à Carta Maior. E adverte: “Todavia não menos grave e talvez mais angustiante. É um colapso enrustido, arrastado, latejante. Sim, você tem a comprovação empírica do fracasso neoliberal; mas e daí? São eles que estão no comando, ou será o quê esse arrocho fiscal nos EUA enfiado pelo Tea Party na goela do Obama? Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: isso é a treva!"
Por Saul Leblon
As manifestações mórbidas de ortodoxia fiscal nos EUA e, antes, o martírio inútil da Grécia, mas também as rebeliões de indignação que tomam as ruas do mundo, em contraste com o alarme sangrento da intolerância neonazista vindo da Noruega, romperam uma blindagem de opacidade e resignação que revestia a crise mundial.
Depois de anos de abordagem asséptica por parte dos governos, e do tratamento complacente e obsequioso desfrutado na mídia, causas e consequências da débâcle mais ruidosa do capitalismo desde 1929 adquirem progressiva transparência.
Arcado sob um vácuo de liderança assustador, os EUA de Obama e do Tea Party, mas também a Europa da rendição socialdemocrata, expõem a dimensão política da crise, que realimenta seu impasse econômico.
Nos confrontos de rua entre uma população desesperada e um poder político de representatividade dissolvente, desnuda-se a brutal incompatibilidade entre os mercados financeiros desregulados e os valores da democracia. Na ascendência do Tea Party, pautando um arrocho ortodoxo que joga o planeta às portas de uma Depressão, desaba a confiabilidade na democracia norte-americana que se transforma em fator de insegurança mundial.
A conversa fiada dos centuriões midiáticos que durante o ciclo neoliberal venderam o peixe podre, segundo o qual, democracia e laissez-faire selvagem são personas indissociáveis do capitalismo desregulado, derreteu. Da poça de desilusão escorre um veio de discernimento que se espalha aos poucos pelas praças do mundo: a crise só será efetivamente superada com uma democracia reinventada pela participação popular.
O movimento não se completa, todavia, apesar da truculência incomum, porque a explosão carece, ainda, daqueles atores dos quais se espera , historicamente, a expressão organizada e programática do conflito social: os partidos políticos, mais especificamente, as legendas alinhadas ao campo da esquerda.
Tal vazio afirma a natureza verdadeiramente sistêmica da atual crise, cujo atributo não se restringe ao colapso do corpo econômico de uma época. A crise paradoxalmente trouxe a política de volta porque nenhuma solução de mercado resolverá os impasses causados por ele e por seus mitos.
Essa singularidade não passa desapercebida pelos que se debruçam, como sempre se debruçaram, na análise das crises e impasses do sistema capitalista em busca de respostas progressistas para o presente e o futuro do desenvolvimento brasileiro. Entre as mais importantes contribuições desse indispensável engajamento intelectual está a voz da professora Maria da Conceição Tavares.
Em março deste ano, quando Obama se preparava para aterrissar no Brasil, em meio a confetes e serpentinas de uma mídia obsequiosa, a narrativa dominante saltitava ao som de um novo samba enredo.
Um esforço coreográfico enorme procurava convencer o distinto público sobre a veracidade de algumas fantasias e adereços. A saber: a viagem era um ponto de ruptura entre a ‘política externa de esquerda’ do Itamaraty - leia-se de Lula , Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães - e o suposto empenho da Presidenta Dilma em uma reaproximação ‘estratégica’ com o aliado do Norte; a visita selaria um a nova agenda, ‘uma reconciliação’ entre Brasília e Washington ancorada em concessões e acordos expressivos; Obama seria o paradigma de uma modernidade a ser seguida por Dilma, distinta do ‘populismo’ político e econômico da ‘escumalha’ latinoamericana - ele usa twitter, é cool, não gosta de Lula, nem de Chávez.
Em entrevista à Carta Maior algumas horas antes daquela prometida apoteose que, como é sabido, redundou em fiasco, a professora Maria da Conceição Tavares aspergiu certeiras bisnagas de realismo sobre o entrudo inebriado. E avisou: “Obama não tem nada a nos oferecer. Quase nada depende da vontade de Obama, ou dito melhor, a vontade de Obama quase não pesa nas questões cruciais. A sociedade norte-americana encontra-se congelada pelo bloco conservador por cima e por baixo. Os republicanos mandam no Congresso; os bancos têm hegemonia econômica; a tecnocracia do Estado está acuada.”E arrematou: “Obama foi anulado pelo conservadorismo de bordel da direita norte-americana”.
Carta Maior voltou a conversar agora com a economista a quem todos ligam quando o mundo despenca e é preciso saber para que lado ir. E é isso que o mundo está fazendo há dias, metafórica e financeiramente: despencando.
A extrema direita republicana pautou Obama, como Conceição havia antevisto; asfixiou a política fiscal da maior economia do planeta. O anúncio de cortes de gastos públicos da ordem de US$ 2,4 trilhões de dólares sobre um metabolismo econômico combalido equivale a ordenar aos mercados que imitem o Barão de Munchausen e se ergam pelos próprios cabelos. O Barão de Munchausen era um contador de lorotas. Só a convicção colegial desastrosa do Tea Party no laissez-faire - cujo equivalente nativo é a mídia e seus consultores - pode inspirar-se nas metáforas capilares do velho Barão para pautar os destinos da economia e da sociedade.
Os mercados sabem que a coisa não funciona assim. Investidores e especuladores urbi et orbi farejaram o desastre e se anteciparam fugindo em massa de ações e títulos, candidatos a perder o valor de face na recessão em curso.
Antes de atender Carta Maior, a professora Maria da Conceição já havia recebido telefonemas de Brasília, com a mesma inquietação: ‘E agora?’.
A decana dos economistas brasileiros entende de crise. Ela nasceu em abril de 1930, poucos meses depois da 5º feira negra de outubro de 1929, quando as bolsas reduziram todo um ciclo da riqueza especulativa a pó e pânico. Em questão de horas.
A voz rouca de quem viveu e estudou todas as demais crises do capitalismo no século XXI, vai logo avisando: “Não, não é um quadro com o de 1929. Aquele teve um ápice, com recidivas, mas ensejou um desdobramento político que inauguraria um outro ciclo, com Roosevelt e o New Deal. O que passamos agora é distinto de tudo isso”.
Maria da Conceição faz uma pausa para para advertir em seguida: “Todavia não menos grave e talvez mais angustiante. É um colapso enrustido, arrastado, latejante. Sim, você tem a comprovação empírica do fracasso neoliberal; mas e daí? São eles que estão no comando, ou será o quê esse arrocho fiscal nos EUA enfiado pelo Tea Party na goela do Obama? Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: isso é a treva!’ , desabafa a professora que recém passou por uma cirurgia delicada, tenta moderar a voz e a contundência, mas seu nome é Maria da Conceição Tavares. Bem, ela reforça o torque satisfeita com a síntese enunciada e sublinha, inclemente: ‘É a treva!’
A professora de reconhecida bagagem intelectual, respeitada mesmo pelos que divergem de seus pontos de vista, normalmente prefere não avançar na reflexão política e ideológica. Mas neste caso insiste: ‘Não é um fascismo explícito, como se viu na Europa, em 30. Até porque o nazismo, por exemplo - e isso não abona em nada aquela catástrofe genocida -, postulava o crescimento com forte indução estatal. O que se tem hoje é o horror de um vazio político de onde emergem as criaturas do Tea Party e coisas assemelhadas na Europa. Não há ruptura na crise, mas sim, permanência e aprofundamento. Será uma crise longa, penosa, desagragdora, mais próxima da Depressão do final do século XIX, do que do crack de 1929”.
Leia aqui a íntegra da entrevista.
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