O que foi feito deverá (Milton Nascimento / Fernando Brant)
Elis Regina
Elis Regina
Publicado no sítio América Latina en Movimento em 1 de agosto de 2011, e, traduzido, no blog Nebulosa de Órion em 6 de agosto de 2011.
Por Atilio Boron
O debate sobre o possível default dos EUA eclipsou completamente um escândalo financeiro de proporções inéditas: em um prazo de pouco mais de dois anos e meio, entre 1º de dezembro de 2007 e 21 de julho de 2010, a FED concedeu empréstimos secretos a grandes corporações e empresas do setor financeiro no valor de 16 trilhões de dólares.
A atenção da opinião pública internacional está concentrada no acordo insignificante assinado entre Barack Obama e o Congresso mediante o qual o presidente se compromete a aplicar um duro programa de ajuste fiscal, centrado no corte de gastos sociais (saúde, educação, alimentação) e infraestrutura de 2,5 trilhões de dólares (2.500.000 milhões de dólares) mas preservando, como o exige o Tea Party, o nível atual de gasto militar e sua eventual expansão. Em troca disto, a Casa Branca recebeu a autorização para elevar o endividamento do Estados Unidos até 16,4 trilhões de dólares (isto é, 16.400.000 milhões de dólares), cifra superior em uns dois trilhões de dólares ao PIB desse país. Com isto espera-se - confiando na "magia dos mercados" - superar a crise da dívida pública e reativar a preguiçosa economia ianque. Esta receita já foi implementada a sangue e fogo na América Latina e não funcionou; tampouco o fêz na convulsionada Europa atual. Com este acordo o certo será o agravamento da crise e, em consequência, a acentuação da belicosidade ianque no cenário mundial.
“Socialismo” para os ricos, mercado para os pobres
O debate sobre o possível default dos EUA eclipsou completamente um escândalo financeiro de inéditas proporções: em 21 de julho passado conheceu-se o resultado da auditoria integral realizada pelo Gabinete Governamental de Prestação de Contas (Government Accoutability Office, GAO por sua sigla em inglês) na Reserva Federal (FED), o banco central dos Estados Unidos, a primeira que se pratica na dita instituição desde que fora criada em 1913 [1]. Os resultados são de pasmar: num prazo de poucos mais de dois anos e meio, entre 1º de dezembro de 2007 e 21 de julho de 2010, a FED concedeu empréstimos secretos a grandes corporações e empresas do setor financeiro pelo valor de 16 trilhões de dólares, uma cifra maior que o PIB dos Estados Unidos que no ano de 2010 foi de 14,5 trilhões de dólares e mais elevada que a soma do orçamento do governo federal durante os últimos quatro anos. Não só isso: a auditoria revelou também que 659 milhões de dólares foram abonados a algumas das instituições financeiras beneficiadas arbitrariamente por este programa para que administrassem a multimilionária salvaguarda dos bancos e corporações disposta como mecanismo de "saída" da nova crise geral do capitalismo. Desse total gigantesco uns 3 trilhões foram destinado a socorrer grandes empresas e entidades financeiras na Europa e Asia. O resto foi orientado para resgate de corporações ianques, encabeçadas pelo Citibank, o Morgan Stanley, Merril Lynch e o Bank of America, entre as mais importantes. Tudo isto enquanto a crise se aprofundava até níveis desconhecidos e a desigualdade econômica dentro da população ianque se difundia por crescentes setores sociais na pobreza e na vulnerabilidade social. Logicamente, esta informação mereceu apenas um espaço completamente marginal na imprensa financeira, tanto internacional como ianque, ou nas grandes mídias de comunicação dos Estados Unidos. São notícias que, como recorda Noam Chomsky, não tem por que serem conhecidas pelo grande público.
As assombrosas revelações deste informe deveriam permitir uma discussão, sobre vários temas de grande importância. Um, a extremadamente desigual distribuição dos esforços requeridos para enfrentar a crise. Até agora aqueles tem sido suportados pelos trabalhadores, enquanto que as grandes fortunas pessoais ou corporativas assim como os fenomenais depósitos dos mais ricos têm se beneficiado com os rebaixamentos de impostos e resgates multimilionários dispostos por George W. Bush e ratificados por Barack Obama no recente acordo. Dois, sobre os inexistentes - ou sumamente débeis e ineficazes - mecanismos de auditoria e controle democrático sobre as políticas e decisões de uma instituição crucial para a economia ianque e o bem estar de sua população como a FED. Três, sobre a duvidosa compatibilidade existente entre uma ordem que se autoproclama democrática e o estatuto jurídico e institucional da FED como entidade autônoma que não tem a obrigação de prestar contas a nenhuma instância de controle democrático. Em relação a este último a FED manifestou sua predisposição em "considerar muito seriamente" as recomendações da GAO, mas por não ser uma instituição governamental não pode ser forçada a aceitá-las. Pese seu caráter privado o Presidente (Chairman) da FED e os sete membros de seu diretório são designados pelo Presidente dos Estados Unidos e estão sujeitos a posterior confirmação pelo Senado. Mas contrariamente ao que pensa a maioria da população ianque a FED não é uma agência do governo federal mas uma corporação privada. Em termos políticos é o partido do capital financeiro. Sua autonomia é tão grande que não sairia um milímetro da legalidade se suas autoridades decidissem desobedecer as recomendações da GAO ou rebelar-se abertamente contra elas. Não existe, para a FED, a prestação de contas à comunidade e por ser uma entidade de direito privado não tem por que acatar sequer o disposto na Lei de Liberdade de Informação, cuja jurisdição extende-se tão somente às instituições públicas. É uma situação aberrante: uma cifra equivalente ao total da dívida pública ianque que pôs na beira do default foi desembolsada em resgates fraudulentos, secretos e muito benéficos para os prestatários e lesivos para o contribuinte, com cujo dinheiro um banco central "independente" como a FED financiou toda esta operação. Cabe perguntar: independente de quem?
Conspiração de silêncio?
O escândalo revelado pela auditoria teve quase nenhuma repercussão nos Estados Unidos. O chairman da FED, Ben Bernanke, fez-se de desentendido e expressou que nos momentos em que se temia um default desse país o importante era resguardar a credibiidade da FED e do sistema monetário ianque. Apesar de que o GAO seja um organismo de apoio aos trabalhos do Congresso, as reações dos representantes e senadores ante a divulgação do informe foram do mais absoluto e imoral silêncio. Até onde pudemos indagar uma das pouquíssimas vozes dissonantes foi a do senador Bernie Sanders, do Estado de Vermont. Sanders é um avis rara não só no Congresso mas na política ianque: é um político que se declara socialista e que foi eleito como candidato independente em aliança com o partido democrata, única maneira de superar o asfixiante bipartidarismo imperante nos Estados Unidos. Eleito como senador em 2007 com 65% dos votos, uma enxurrada eleitoral pouco frequente na política desse país, foi apoiado por diversos movimento sociais e pequenas organizações políticas de Vermont. Sanders reagiu duramente quando conheceu o informe. Ver suas declarações aqui. Transcrevemos a continuação de alguns dos parágrafos mais destacados da declaração emitida por seu gabinete de imprensa, que praticamente não foi levantada por nenhuma mídia dos Estados Unidos, e que diz o seguinte:
21 de julho, 2011.
A primeira auditoria integral da Reserva Federal descobriu novos e assombrosos detalhes acerca de como os Estados Unidos forneceram a bagatela de 16 trilhões de dólares (16.000.000 de milhões) em empréstimos secretos para resgatar bancos e empresas ianques e estrangeiras durante a pior crise econômica desde a Grande Depressão. Uma emenda proposta pelo Senador Bernie Sanders à lei da reforma de Wall Street - aprovada há exatamente um ano - havia ordenado ao Gabinete Governamental de Prestação de Contas (Government Accountability Office) levar a cabo esse exame.
"Como resultado dessa auditoria sabemos agora que a Reserva Federal forneceu mais de 16 trilhões de dólares em assistência finaneira total a algumas das maiores corporações e instituições financeiras do Estados Unidos e do resto do mundo", disse Sanders. "Isto é um caso claríssimo de socialismo para os ricos e descarado individualismo do tipo `salve-se quem puder' para os demais."
Esclarecimento: o Government Accountability Office (GAO) é uma agência independente e não partidária que trabalha para o Congresso dos Estados Unidos. A missão do GAO é investigar a forma que o governo federal dispõe dos dólares dos contribuintes. O chefe do GAO é o Auditor Geral dos Estados Unidos, e é designado por um período de 15 anos pelo Presidente a partir de uma lista de candidatos elaborada pelo Congresso. O chefe atual do GAO é Gene L. Dodaro, que havia sido nomeado pelo Presidente Barack Obama em setembro de 2010 e confirmado em seu cargo em dezembro desse mesmo ano pelo Senado (Nota de A. Boron).
Entre outras coisas a auditoria estabeleceu que a Reserva Federal "carece de um sistema suficientemente exaustivo para tratar casos de conflitos de interesses, apesar de que existem sérios riscos de abusos neste sentido". De fato, segundo esta auditoria a Reserva Federal emitiu desculpas de conflitos de interesses a favor de empregados e contratados privados afim de que pudessem manter seus investimentos nas mesmas corporações e instituições financeiras que recebiam empréstimos de emergência.
Por exemplo, o CEO de JP Morgan Chase cumpria funções na Diretoria da Reserva Federal de Nova York enquanto seu banco recebia mais de 390 bilhões de dólares em ajuda financeira por parte da Reserva Federal. Além disso, JP Morgan Chase atuava como um dos bancos de compensação para os programas de empréstimos de emergência da FED.
Outro achado pertubador do GAO é o que refere que em 19 de setembro de 2008 o senhor William Dudley, presidente da Reserva Federal de Nova York, recebeu uma desculpa para permitir-lhe conservar seus investimentos na AIG (American International Group, um líder mundial no campo dos seguros) e GE (General Elecgtric) enquanto estas companhias recebiam fundos de resgate.. Uma razão pela qual a FED não obrigou a Dudley vender suas ações, segundo a auditoria, foi porque tal ação poderia ter criado a aparência de um conflito de interesses.
A investigação revelou também que a FED terceirizava contratistas privados como JP Morgan Chase, Morgan Stanley e Wells Fargo a maioria de seus empréstimos de emergência. Estas mesmas firmas recebiam também trilhões de dólares da FED por empréstimos concedidos a taxas de juros próximas de zero.
Os principais beneficiários destes empréstimos -concedidos entre 1º de dezembro de 2007 e 21 de julho de 2010- são os seguintes:
Citigroup: $2.5 billones ($2,500,000,000,000)
Morgan Stanley: $2.04 billones ($2,040,000,000,000)
Merrill Lynch: $1.949 billones ($1,949,000,000,000)
Bank of America: $1.344 billones ($1,344,000,000,000)
Barclays PLC (United Kingdom): $868 mil millones ($868,000,000,000)
Bear Sterns: $853 mil millones ($853,000,000,000)
Goldman Sachs: $814 mil millones ($814,000,000,000)
Royal Bank of Scotland (UK): $541 mil millones ($541,000,000,000)
JP Morgan Chase: $391 mil millones ($391,000,000,000)
Deutsche Bank (Germany): $354 mil millones ($354,000,000,000)
UBS (Switzerland): $287 mil millones ($287,000,000,000)
Credit Suisse (Switzerland): $262 mil millones ($262,000,000,000)
Lehman Brothers: $183 mil millones ($183,000,000,000)
Bank of Scotland (United Kingdom): $181 mil millones ($181,000,000,000)
BNP Paribas (France): $175 mil millones ($175,000,000,000)
Wells Fargo & Co. $159 mil millones ($159,000,000,000)
Dexia SA (Belgium) ) $159 mil millones ($159,000,000,000)
Wachovia Corporation $142 mil millones ($142,000,000,000)
Dresdner Bank AG (Germany) $135 mil millones ($135,000,000,000)
Societe Generale SA (France) $124 mil millones ($124,000,000,000)
Todos los demás $2,6 billones ($ 2,639,000,000,000)
Total $16.115 billones ($ 16.115.000.000.000)
Publicado en ALAI, América Latina en Movimiento, 1 de agosto de 2011.
NOTAS:
[1] A versão completa do informe da GAO pode ser consultada aquí
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