Só posso acreditar num
Lênin que saiba dançar
“A erva existe exclusivamente entre grandes espaços cultivados. Ela preenche os vazios. Ela cresce entre, e no meio das outras coisas. A flor é bela, o repolho útil, a papoula enlouquece. Mas a erva é transbordamento, ela é uma lição de moral.”
Henry Miller, Hamlet.
O velho mundo morre enquanto o novo tarda a aparecer. No claro-escuro perfilam os monstros. A citação é de Gramsci e se aplica bem ao momento que vivemos. Quando um futuro já presente, tão alegre, se debate para existir; um presente já passado teima seus últimos golpes sem direção, em triste agonia. Nesse jogo de sombras, os monstros abrem os olhos. Despertam, caminham e logo se perguntam: quem somos? Não sabemos. Mas não deixamos de reconhecer a força, a natureza disforme, a imprevisibilidade, e os seus perigos e é bom que assustem e inspirem receios e desconfianças. Em todo processo transformador, o medo tem que mudar de lado. E se existem monstros do bem e monstros do mal, de qualquer modo, é só frequentar o cinema para saber que os monstros desejam a mesma coisa: amar e serem amados. Este grande amor, monstruoso e nada sentimental, não pode faltar em todas as lutas generosas e produtivas mobilizações por um outro mundo.
Enquanto isso, os
jornalistas de esquerda não conseguem captar, buscam pautas cristalinas e
líderes visíveis e acontecimentos inequívocos. Vamos dar um desconto: eles são
jornalistas. Pedem fatos jornalísticos. Estamos fazendo outra coisa. Menos
sintetizar do que multiplicar: produzir o máximo existencial, não se separar do
turbilhão.
O movimento já mudou o
léxico da política, resgatou palavras e conceitos fora de uso geral,
desestabilizou o que se apresentava como dogma e senso comum. Alastrou um
desejo de mudança que chacoalha o dito “campo das esquerdas”. Apesar do
dissenso a respeito, penso eu que, em meio a tantas palavras e conceitos em
estado de fluidez, seja importante às Ocupas articularem um discurso do ponto
de vista da esquerda.
Mas não esquerda como os
partidos se entendem por esquerda. Porque o Occupy
não se filiou a eles, não lhe interessa a máquina da representação. Os partidos
de esquerda sondam no Occupy algum
ponto de acoplamento para a agenda e os mandatos, alguma maneira de enquadrá-lo
nas campanhas eleitorais. Como se os movimentos devessem parar de sonhar
monstros e se esforçar para funcionar conforme o modelo representativo
existente, nesse subcosmo de estado e mercado, público e privado. Os
partidos de esquerda são os repolhos de Henry Miller. Nem tampouco esquerda
como os sindicatos e as centrais sindicais se entendem por esquerda. Não é
isso. Porque esses cobrem apenas uma mínima fração da classe trabalhadora:
formal ou informal, reconhecida ou não, isso quando não se prestam a organizar
uma gestão mais horizontal da exploração do trabalho, cooptados. Os
partidos e os sindicatos de esquerda se esforçam por disputar o estado e a
fábrica, quando o estado e a fábrica são parte fundamental do problema.
Nesse sentido de esquerda, realmente não dá. Essa esquerda que joga com a direita por melhores negócios, por melhores condições para fazer negócios e gerir os lucros e investimentos. Têm pessoas de esquerda que não nasceram na família certa ou não conhecem as pessoas certas, a fim de vir a gerenciar uma grande empresa ou banco, então resolveram ser empresários e banqueiros através do estado. Além disso, do outro lado, toda grande empresa ou banco faz negócios, direta ou indiretamente, por dentro do estado; ou simplesmente não é viável. Esse agenciamento de uns e outros coloca o estado como o balcão onde se viabilizam e realizam negócios, onde são mediadas as demandas e os conflitos, sempre em nome de melhores negócios. É onde as políticas públicas cada vez mais não passam de novos modelos de gestão e negócio, cada vez mais eficientes e transparentes e sustentáveis. É o estado-empresa, sem política, isto é, sem antagonismo, que mistifica as causas sistêmicas e estruturais por meio de causas morais e acessórias.
Nesse sentido de esquerda, realmente não dá. Essa esquerda que joga com a direita por melhores negócios, por melhores condições para fazer negócios e gerir os lucros e investimentos. Têm pessoas de esquerda que não nasceram na família certa ou não conhecem as pessoas certas, a fim de vir a gerenciar uma grande empresa ou banco, então resolveram ser empresários e banqueiros através do estado. Além disso, do outro lado, toda grande empresa ou banco faz negócios, direta ou indiretamente, por dentro do estado; ou simplesmente não é viável. Esse agenciamento de uns e outros coloca o estado como o balcão onde se viabilizam e realizam negócios, onde são mediadas as demandas e os conflitos, sempre em nome de melhores negócios. É onde as políticas públicas cada vez mais não passam de novos modelos de gestão e negócio, cada vez mais eficientes e transparentes e sustentáveis. É o estado-empresa, sem política, isto é, sem antagonismo, que mistifica as causas sistêmicas e estruturais por meio de causas morais e acessórias.
Isto não significa aderir
à pauta ultraliberal da sociedade civil contra o estado, como se não fossem
dois lados da mesma moeda. Nesta, o estado impediria a liberdade individual e a
livre circulação dos produtos, ou seja, o mercado livre. É o discurso que clama
por uma unificação ao redor do combate à corrupção e aos impostos, e contra a
especulação financeira dos yuppies de
Wall Street, como se a “economia real” não fosse ela mesma o problema. Esse
populismo que se diz acima da divisão entre esquerda e direita, todavia
francamente direitoso, aparece no movimento Cansei
e numa famosa capa da Veja com o
símbolo do Anonymous; mas também no Tea Party, nos libertarians e no guru da cultura livre, Lawrence Lessig, que muito
eloquentemente declarou seria interessante uma aliança entre o TP e o movimento
Occupy.
Nesse outro sentido
pós-esquerda, também não dá. Se o movimento Occupy
é monstruoso, é porque resgata o sentido político do conflito, por afirmar com
todas as letras que a luta é dos 99% contra o 1%. Aí se resgata o sentido de
esquerda que importa, colocar-se na perspectiva dos pobres. E não dos modelos
de negócios (certas “políticas públicas”) ou da ideologia (apelo à “gestão
sustentável e eficiente”). Na perspectiva dos pobres, de esquerda!, trata-se de
confrontar a desigualdade social em todas as suas expressões paralelas de
opressão: classe, sexualidade, gênero, raça, imigração. É
combater para sabotar as estruturas e discursos que produzem e conservam a
desigualdade em primeiro lugar. E reapropriar-se da riqueza social, de
baixo pra cima, apesar dos especialistas gestores, dos representantes
partidários e sindicais, e também da opinião pública e seus fatos, isto é, dos
jornalistas e da miséria do jornalismo.
Nas Ocupas do Brasil, o
problema foi colocado além de qualquer abstração quando foram inundadas de
pobres, com seu sentido pleno de vitalidade e liberdade. Uma quermesse de
monstros metropolitanos. Pode não ter achado as soluções, mas achou os
problemas e vem colhendo falas e contribuições em lugares e pessoas desprezados
pela esquerda institucional. Quando se levantaram e tomaram a palavra, as
pessoas em situação de rua, os que lutam por moradia e terras, pelo direito de
produzir direitos, os resistentes terapeutizados pelo choque de ordem, o
racismo de sempre e o urbanismo dos megaeventos, quando esse rio subterrâneo e
lamacento por debaixo do Brasil oficial irrompeu em toda a sua feiura, em seus
dentes estragados e cabelos desgrenhados, em sua potência constituinte. Das
Ocupas, incipientemente, se produziu esse não-lugar onde as vozes outras
puderam articular a cultura de resistência que já corre pelo subsolo, pelos
esgotos da classe média de esquerda, pelos fluxos da cidade, centros e
periferias. Sem teto, sem renda, sem estudo, sem consideração, enfim,
essa violência da miséria, plena de sentidos e pulsante de vida, comunicada
abertamente. Que é violenta mesmo e por isso nos reeduca, nós os mal educados
pelo estudo formal, porque a única forma de comunicar a miséria é pela
violência, alegórica ou física — de toda sorte, política. Já não era outro o
ensinamento da estética da fome, nos filmes de Glauber Rocha. O câncer não está
no movimento social, mas na Sociedade (1% e seus representantes) que o fratura
de injustiça, exclusão e porrada.
O Occupy pode ser a nova esquerda. Não significa que deva refundá-la
do zero, mas reorganizá-la, inclusive por dentro de forças transformadoras
através de partidos e sindicatos. Sem desprezar instituições, mas as
atravessando. Já está fazendo isso. A esquerda tradicional tem mais a aprender
com o ciclo de lutas de que 2011 foi tão marcante, enriquecendo o seu patoá
magro, do que o inverso. O movimento Occupy
não tem que pedir permissão para fazer política e bagunçar o quintal da
esquerda. O Occupy é erva daninha, monstruosa, e não
adianta insistir que quem está nele não vai querer plantar mais um repolho.
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