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Espionam Perón, compõem com Videla
Documentos da ditadura brasileira obtidos por este diário aportam detalhes inéditos do arquivo que a presidenta Dilma quer tornar público, mas os militares resistem
Por Dario Pignotti - Página/12
De Brasília
"O ex-presidente Juan Perón esteve na mira dos serviços de inteligência brasileiros, isso é quase um fato, participei em reuniões com ele, pressentia-se que nos vigiavam, se se abrisse os arquivos da ditadura, como quer a presidenta Dilma, haveria mais provas disso", afirma João Vicente Goulart, filho do ex-mandatário João Melchior Goulart, Jango, amigo do general argentino por mais de duas décadas.
Transcorridos 47 anos da derrocada de Jango e 38 de seus últimos encontros com Perón, provavelmente espionados por agentes brasileiros, "é hora de terminar em esse longo silêncio, porém vivemos de costas à história dos anos 70, devido às pressões de grupos ligados ao terrorismo de Estado", lamenta João Vicente.
Dilma Rousseff parece compartilhar essa preocupação e na semana passada instruiu a seus ministros, em particular à titular dos Direitos Humanos, Maria do Rosário Nunes, para que persuadam o Congresso de aprovar de imediato o projeto sobre a Comissão da Verdade, contra a qual insubordinaram-se os chefes das forças armadas em dezembro de 2009.
"Um dia, estando em um hotel de Madri com papai, atendo o telefone e alguém me diz: ‘Quiero hablar con Janguito, dígale que soy el general Juan Perón’. Eu não podia acreditar naquilo, mas era verdade, Perón estava do outro lado da linha para convidar Jango a conversar na residência de Puerta de Hierro, creio que era início de 1973", conta Goulart a Página/12.
"Em uma ocasião se falou da possibilidade de fazer um acordo, meu pai (fazendeiro) venderia carnes nos termos de uma plano trienal que o governo peronista iria implementar, mas isso fracassou por influência do bruxo", menciona Goulart, aludindo ao modo como era conhecido José López Rega. "Houve mais reuniões com Perón, outra foi feita em Buenos Aires, lembro que algumas pessoas nos diziam que os serviços estavam rondando por lá".
Documentos do regime brasileiro obtidos por este diário corroboram as suspeitas de Goulart. "A conversação (Perón-Goulart) girou em torno da situação brasileira e sobre as ideias de Juan Perón para a criação de um amplo movimento latinoamericano de liberação cujo epicentro se localizaria na Argentina", diz um despacho de março de 1973, rotulado como "secreto" e em cuja margem esquerda se lê a sigla CIEX, Centro de Informações do Exterior, organismo dependente da Chancelaria brasileira.
"Era lógico que a ditadura quisesse seguir os passos de Perón, ele propôs ao meu pai que se radicasse na Argentina, de onde teria uma plataforma para organizar seu regresso ao Brasil e forçar a abertura democrática que os militares queriam atrasar", sustenta Goulart.
Nem todos os membros do Serviço Exterior integravam o CIEX, onde somente se admitia a quem fazia do anticomunismo uma profissão de fé. Seu criador foi o diplomata Pio Correa, um dos primeiros embaixadores que representaram a ditadura em Buenos Aires e a quem alguns pesquisadores percebem como agente duplo, por seus vínculos com a CIA.
Além de buscar exilados brasileiros, alguns dos quais logo seriam sequestrados na Argentina e assassinados no Brasil, o CIEX também teria seguido os passos de líderes estrangeiros antipáticos ao projeto de poder regional da Revolução Brasileira, implantada em 31 de março de 1964.
Perón era tipificado como um "cúmplice" de Goulart e do "comunismo-brizolista (Leonel Brizola, dirigente nacionalista e cunhado de Goulart)" segundo palavras do general e superministro da ditadura Golbery do Couto e Silva, outro que recebia a alcunha de bruxo.
Dizem que a pele de Golbery, considerado o intelectual de mais brilho do regime que imperou entre 1964 e 1985, se eriçava só de ouvir o nome do fundador do movimento justicialista.
Algo parecido ocorria com o ditador Ernesto Geisel, quem se referia ao argentino como a "Múmia" e o excluiu de sua cerimônia de posse, no começo de 1974, onde estiveram o chileno Augusto Pinochet, o boliviano Hugo Banzer e o uruguaio Juan María Bordaberry.
Geisel iniciou um período de mudanças na política externa conhecido como de "pragmatismo responsável", caracterizado pela abertura de relações com países do Terceiro Mundo e menor alinhamento com os Estados Unidos.
Esse giro não implicava no fim da estratégia de contenção do comunismo e outra das marcas de sua política externa foi a intensa, por vezes contraditória, relação com o secretário de Estado Henry Kissinger.
Nenhum chanceler teve mais sintonia com Kissinger do que Francisco Azeredo da Silveira, quem desempenhou o cargo durante o quinquênio de Geisel.
Antes disso Azeredo comandou a embaixada na Argentina, "onde foi um pioneiro do terrorismo de Estado regionalizado porque em 1970 foi o responsável pelo sequestro em Buenos Aires e translado ilegal ao Brasil do coronel Jefferson Cardin, um militar nacionalista e brizolista, que foi meu companheiro do cárcere do Rio", diz Jarbas Silva Marques, prisioneiro político entre 1967 e 1977.
"Jefferson Cardin me disse na prisão do Rio que Azeredo da Silveira sendo embaixador sabia tudo sobre a Argentina, certamente ele sabia dessa possível espionagem sobre Perón e mandava a Embaixada colaborar com os golpistas."
"Essa é uma história pesada, estamos falando do chefe da diplomacia entre 1974 e 1979. De uma política de Estado. Até hoje tem gente querendo esconder essa história debaixo do tapete, há muita pressão, vemos o presidente do Senado José Sarney fazendo lobby a favor dos militares para impedir que Dilma abra os arquivos", afirmou Silva Marques ao Página/12.
É impossível fazer uma reconstrução acabada de todos os movimentos da diplomacia brasileira e seus pactos com os sediciosos argentinos, devido à falta de documentação suficiente.
Da leitura de centenas de papéis em poder deste diário surge que eram frequentes os contatos, e a afinidade, com aqueles que perpetrariam o golpe de 1976 e aprovavam a guerra suja já iniciada então contra a "subversão".
O telegrama "secreto" enviado pela Embaixada brasileira em 3 de setembro de 1975 trata de uma "longa conversa" com os "comandantes Jorge Videla e Eduardo Massera", os quais expressaram seu interesse em "estimular por todos os meios a aproximação das Forças Armadas" de ambos os países.
Em outra mensagem "confidencial", de 19 de fevereiro de 1975, se trata sem eufemismos sobre a coordenação repressiva.
A nota relata um encontro oficial de diplomatas brasileiros com o ministro da Defesa argentino Adolfo Savino, quando se tratou com "total franqueza sobre a necessidade de um profundo entendimento de nossos países frente aos inimigos comuns da subversão".
Durante seu diálogo com o Página/12, João Goulart filho e Jarbas Silva Marques lamentam a "demora" histórica do Brasil em relação a Argentina, Chile e Uruguai, onde "houve um acerto de contas com a história e a verdade", mas acreditam que essa situação poderá se reverter.
Eles, assim como vários organismos de direitos humanos, confiam no compromisso com a verdade assumido por Rousseff, vítima de prisão e torturas durante o regime, assim como da pressão internacional, e citam o exemplo do veredito da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Estado brasileiro por ignorar os delitos da ditadura.
Tradução Aquiles Lazzarotto
No Página/12 aparecem duas imagens de documentos tratados na matéria.
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